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O terreno fértil da fronteira incerta


“Eu me chamo Roberto Efrem Filho e sou advogado da Terra de Direitos”. Eu disse, mas não passava dos 25 anos em 2009, a voz dificultada pela acidez nervosa no estômago, as pernas agitadas sob a mesa em que se reuniam integrantes do Programa de Proteção aos Defensores de Direitos Humanos em Pernambuco. “Eu me chamo Roberto Efrem Filho e sou advogado da Terra de Direitos, Senhor Delegado, não sei se o Senhor conhece, uma organização de defesa de Direitos Humanos que, dentre outras pautas, acompanha conflitos agrários e territoriais”.

Do outro lado da mesa, o Senhor Delegado se desconfortava num paletó apertado e puído, a gravata ondulando sobre a barriga desafiadora de botões de camisa de mangas cumpridas. “Nossa organização encaminhou, à equipe deste Programa de Proteção, uma série de denúncias de violações de direitos cometidas pelo Senhor X, o arrendatário das terras do Engenho Y, quem o Senhor Delegado provavelmente conhece”.

O homem balançou a cabeça afirmativamente, parecia não mover nenhuma outra parte do corpo a não ser aquela já avermelhada que sobrevivia ao colarinho sob o qual, hoje eu presumo, ele suava tanto quanto eu.

“Segundo os trabalhadores rurais que apresentaram tais denúncias, o Senhor Delegado conflui com essas violações de direitos, por exemplo, ao se recusar a recebê-los na delegacia de polícia, a tomar seus depoimentos e formalizar suas queixas contra o Senhor X”. As mãos do Delegado se inquietavam, trespassavam trêmulas a caneta de uma para a outra, enquanto eu manejava ansioso os documentos que havia estudado, durante dias, para aquele instante.

“Os trabalhadores alegam que nessas datas em que sofreram violências físicas cometidas por jagunços a serviço do arrendatário, compareceram à delegacia, mas que o Senhor Delegado se recusou a ouvir o que tinham a dizer”. “Eles contam também que, nas seguintes datas” – eu apontava os números marcados de amarelo no papel timbrado, a garganta seca como uma raiva antiga – “o Senhor Delegado entrou nas terras do Engenho Y, na carona de um automóvel de propriedade do Senhor X, para repreender os trabalhadores”.

Os demais presentes à reunião saltavam os olhos do Senhor Delegado para mim, de mim para o Senhor Delegado. E eu não sabia se interrogavam a aparente empáfia do rapazote que mal havia deixado as bancas da Faculdade de Direito e agora punha em xeque a carreira de um homem devotado ao serviço púbico havia mais de duas décadas, ou se duvidavam da cena a que assistiam, em que um Senhor Delegado, tão dificilmente tangível a denúncias como aquelas e denunciantes como aqueles, e que, apesar do preto bufento do terno gasto e da baixa elegância no trato, costuma se compreender protegido, em tudo o que faça, por uma rede de defesas senhoriais muito mais antiga que a secura da raiva que eu sentia, via-se constrangido como um réu.

“Eu gostaria então de perguntar, Senhor Delegado, sobre os porquês de suas recusas em receber os trabalhadores e reduzir a termo suas questões e sobre a pertinência de o Senhor, sabendo do conflito que atravessa o Engenho Y, entrar no carro do Senhor X, demonstrando explicitamente estar ao seu lado, quando o seu dever profissional exigiria uma investigação livre de influências externas”.

Eu empreendia as perguntas e notava, no eco de cada palavra, os modos de Luciana Pivato se portar diante de “autoridades” em circunstâncias extremas. Alguns meses antes daquela reunião, Luciana me chamou a uma conversa. Eu já a conhecia havia alguns anos, desde que ela, em 2005, inaugurou o escritório da Terra de Direitos no Recife e eu, estudante, encontrava-a facilmente nas atividades do movimento de Direitos Humanos ou do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra, o MST.

Nesses anos, Luciana se tornou uma referência para mim e eu não tinha como evitar admiração pela advogada popular que, vinda do Paraná, adentrando a aridez dos nossos conflitos, enfrentava desembargadores e percorria noites em portas de delegacias se, dentro delas, um sem-terra era criminalizado. Sua chamada era, para mim, uma inexorabilidade.

E eu me surpreendi. “Beto, nós queremos que você componha a equipe da Terra de Direitos”. Sequer se contava um mês que eu havia terminado o curso de mestrado e defendido a dissertação. Eu dava aulas como professor substituto na Faculdade de Direito do Recife, nunca advogara e guardava absoluta convicção, como ainda guardo, da minha inabilidade para a advocacia. “Beto, nós queremos que você componha a equipe da Terra de Direitos” e eu tropeçava na possibilidade da resposta, “sim”, mas é claro, uma convocação irrecusável, um dever, um compromisso, uma honra. O terreno fértil da fronteira incerta entre desejos e temores. O caso do Engenho Y me ofereceria a minha primeira audiência judicial.

Luciana me telefonou. “Beto, recebemos há pouco a informação de que, amanhã, acontecerá uma audiência na comarca W relativa àquele conflito do Engenho. Os trabalhadores estão sendo acusados de algo, mas não conseguimos descobrir do quê. Parece que a intimação não diz”.

Eu, então, telefonei para Fernando Prioste, o advogado da organização que, antes de seguir para o Pará em razão da Terra de Direitos, acompanhava mais diretamente as audiências e processos judiciais referentes ao Engenho Y.

Fernando, como Luciana já fizera, explicou-me que as terras arrendadas pelo Senhor X eram objeto de uma ação judicial de desapropriação com fins de reforma agrária, que a vistoria do Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária concluíra acerca da improdutividade das terras, mas que o Senhor X questionava judicialmente a vistoria e, portanto, o processo judicial de desapropriação.

Isto, ao tempo que o próprio Senhor X era alvo de uma investigação da Polícia Federal – que logo se transformaria em um processo judicial que, ao menos em primeira instância, acarretaria na condenação do Senhor X – a respeito do crime de emprego de trabalho análogo ao escravo em suas plantações. Latifúndio, trabalho escravo. Como eu disse, uma raiva antiga.

Cheguei, à Comarca W, uma hora antes da audiência. Não consegui dormir na noite anterior, algo que acabaria se repetindo às vésperas de todas as audiências judiciais em que eu tive de advogar. Entrei no fórum como um tiro, preso à mesma gravata que usaria diante do Senhor Delegado.

A única. Consultei os autos do processo judicial. Neles, dizia-se algo assim: “o Senhor X alega que recebeu um telefonema anônimo, acredita que de um orelhão, em que um homem desconhecido informava que soube que João A, João B, João C e João D puseram fogo no canavial do Senhor X”.

Estavam lá, com os nomes estampados em letras maiúsculas que ressaltavam, sem discrição, sua condição de réus, os mesmos trabalhadores que o Senhor Delegado se negava a receber, os mesmos trabalhadores cujas denúncias de violências e torturas preenchiam páginas e páginas timbradas com a logomarca da Terra de Direitos e dirigidas a órgãos governamentais, Promotores de Justiça, Ministros, Secretários, agentes de Estado os mais diversos, com poucas respostas eficazes, mas processos judiciais inadmissíveis – porque “ligações anônimas” não cabem num verso, não conjugam verbo, não consubstanciam suficiente indício de autoria ou prova de materialidade.

 

"Estavam lá, com os nomes estampados em letras maiúsculas que ressaltavam, sem discrição, sua condição de réus, os mesmos trabalhadores que o Senhor Delegado se negava a receber".

 

“Por favor, Sua Excelência, eu me chamo Roberto Efrem Filho, sou assessor jurídico da Terra de Direitos, uma organização de defesa de Direitos Humanos que acompanha conflitos agrários como este do Engenho Y, e, na condição de advogado dos acusados, eu gostaria de me pronunciar para requisitar a extinção da ação porque, afinal, ‘ouvir dizer’ não comprova nada, uma ação assim, Sua Excelência, é imponderável”.

A sala de audiências estava abarrotada de homens engravatados, os quais, não posso deixar de pensar, muito possivelmente possuíam bem mais gravatas que eu. Atrás de mim, de pé e espremidos entre os colarinhos alheios, João A, João B, João C e João D escutavam o que se falava.

A Senhora Juíza então respondeu às minhas considerações. “O Senhor Advogado está correto, a ação não pode prosseguir, mas é preciso que se entenda que esses movimentos sociais” – dizia “movimentos sociais” em tom de escárnio – “não têm limites.

Na semana passada mesmo, demorei três horas para atravessar a Ponte H, no Recife, porque movimentos sociais resolveram protestar, mas e o meu direito a ir e vir? Então, Senhor Advogado” – dizia “Senhor Advogado” com o mesmo tom de escárnio, mas ameninando a pronúncia, talvez por conta dos meus 25 anos, ou do meu único nó de gravata – “há de se saber que não se pode fazer o que se quer, que é necessário ponderar valores jurídicos.

É, inclusive, muito bom que os senhores Joãos estejam aqui para que ouçam o que estou dizendo e aprendam os limites”. Disse isso e perguntou ao advogado do Senhor X, também sentado à mesa da sala de audiências, se havia o que dizer. O Advogado do Senhor X explicou que o seu cliente fora à delegacia de polícia apenas para avisar ao Senhor Delegado que recebera a ligação porque não poderia deixar de prestar informação sobre a ocorrência de um crime e que, sendo assim, agiu de boa-fé.

A Senhora Juíza, visivelmente impaciente com aquilo tudo, decidida a finalizar a manhã de audiências, fechando a bolsa sobre a mesa e bastante disposta a assinar a ata da não-audiência para atravessar quantas pontes pretendesse, resolveu, contudo, perguntar se a defesa gostaria de dizer algo.

Eu, admitindo o caso por encerrado, aliviado com o seu desfecho, já abria a boca para o “não” quando João A interrompeu os meus dentes com o seu “Senhora Juíza, eu quero falar que o negócio aí não é de canavial queimado, não é de nada disso, é que eu moro nessas terra desde antes do Senhor X chegar” – João A derrubou a primeira lágrima – “meu pai e minha mãe me criaram lá, plantaram lá, viveram lá e morreram lá”. – João A derrubou a segunda, a terceira e a quarta lágrimas.

“Só que nós nunca ganhou nada por nenhum dia de trabalho, e eu sou trabalhador, eu tenho meus direito, eu sei, eu sei que eu tenho os direito da reforma agrária. O Senhor X também sabe que eu tenho. É por isso mesmo que ele faz tudo o que ele faz, que os jagunço dele ameaça nós, bate, tortura, queima os roçado da gente, tenta expulsar nós de todo jeito, mas nós não sai, porque a terra vai ser nossa” – João A derrubou lágrimas, lágrimas, lágrimas que eu não pude mais contar porque eu, como João A, derrubava lágrimas – “a terra vai ser nossa, Senhora Juíza, a terra vai ser nossa”.

 

"João A derrubou lágrimas, lágrimas, lágrimas que eu não pude mais contar porque eu, como João A, derrubava lágrimas – “a terra vai ser nossa, Senhora Juíza, a terra vai ser nossa”.

 

“Eu gostaria então de perguntar, Senhor Delegado, sobre os porquês de suas recusas em receber os trabalhadores e reduzir a termo suas questões e sobre a pertinência de o Senhor, sabendo do conflito que atravessa o Engenho Y, entrar no carro do Senhor X, demonstrando explicitamente estar ao seu lado, quando o seu dever profissional exigiria uma investigação livre de influências externas”. As respostas do Senhor Delegado foram evasivas.

O carro da delegacia, afinal, não suportaria o terreno do Engenho, por isso ele preferiu pegar uma simples carona com o arrendatário, “nada demais”, insistiu. No fim, isso eu também viria a aprender, as respostas importam menos do que a oportunidade das perguntas. A premência de que um homem como aquele se veja na condição de, confrontadas as suas certezas antigas, ter de produzir repostas. Não, eu não perguntava só.

Os modos de Luciana compunham o meu esforço de pergunta. Em 2009, àquela mesa na Secretaria de Justiça do Governo do Estado de Pernambuco, ela, Fernando, Darci Frigo, Sara Gorsdorf, Leandro Gorsdorf, Antônio Sérgio Escrivão Filho, Jackeline Florêncio, André Barreto, Maria Rita, Sérgio Sauer, Paula Cozero e gerações de militantes que, desde 2002, tecem a Terra de Direitos, perguntavam ao Senhor Delegado o que eu perguntava. Em todos eles, havia as lágrimas de João A. Lágrimas que João A, de pé, derrubou na sala de audiências em que o Senhor X, incomodamente sentado, ouvia um trabalhador falar.



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Ações: Conflitos Fundiários,Defensores e Defensoras de Direitos Humanos,Democratização da Justiça
Casos Emblemáticos: Contra-Açude e Bascuá
Eixos: Política e cultura dos direitos humanos



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Roberto Efrem Filho

Roberto Efrem Filho é professor do Departamento de Ciências Jurídicas da Universidade Federal da Paraíba, integrante do Setor de Direitos Humanos do MST em...

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