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Supremo deve decidir sobre proteção de comunidades quilombolas


Diante da ausência de medidas de combate à Covid-19  e de proteção às comunidades quilombolas, movimento quilombola e partidos políticos ajuizam ADPF no Supremo Tribunal Federal.

Foto: Lizely Borges

No início do mês de setembro a Coordenação Nacional de Articulação das Comunidades Negras Rurais Quilombolas (Conaq), junto a diferentes partidos políticos, ingressou com uma Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF 742/2020), no Supremo Tribunal Federal (STF), para impedir que as violações a direitos fundamentais quilombolas permaneçam sendo realizadas  pelas omissões e ações dos poderes públicos, sobretudo instituições federais, que não têm qualquer proposta ou plano de ação que considerem as vulnerabilidades específicas dessa população à situação pandêmica declarada no Brasil desde 11 de março de 2020.

Vemos que a situação dos quilombos no contexto de pandemia é desconhecida para a maior parte da população. O conjunto da sociedade ainda não conhece com profundidade “o que são os quilombos”, uma vez que suas existências e seus direitos diferenciados, em normas convencionais, constitucionais e infraconstitucionais, não são amplamente publicizados pelo Estado brasileiro, bem como pela grande imprensa tanto quanto a demanda e o grau de vulnerabilidade dessas comunidades exigiriam.

Quando falamos em vulnerabilidade dessas comunidades, não queremos dizer que há passividade. São comunidades cujas existências só são conhecidas hoje graças à sua força de organização e resistência. De fato, ocorre que as estratégias de longo prazo do Estado brasileiro nunca alcançaram um nível profundo de compromisso com elas, fazendo com que, ao longo de finais do século XIX e quase todo século XX, tenhamos visto operar um projeto de invisibilização e assimilacionismo que lhes negava existência plena.


Branqueamento da população

Inicialmente, vale mencionar que o Estado brasileiro já teve a superação da população negra como projeto. A expectativa sobre a imigração europeia para o Brasil era de que essa fosse funcional ao projeto de branqueamento da população, que marca o pensamentoe as políticas eugenistas e racistas, levados a cabo pelas elites brancas no Brasil, construindo o próprio projeto de nação e de Estado em processo de formação em finais do século XIX. Dizemos isso, pois, à época, essas questões estavam assentadas em documentos, legislações e discursos públicos de autoridades.

O Brasil, um dos últimos países a abolir a escravidão, 38 anos antes da abolição formal, constituía as bases da estrutura fundiária tal como a conhecemos hoje, por estabelecer, naquele momento, que a terra seria adquirida pela compra e venda (Lei de Terras de 1850), fazendo com que as massas de pessoas negras escravizadas, em 1888, quando formalmente libertas,  não encontrassem condições de acessar terra, trabalho, direitos ou políticas públicas que efetivamente tivessem sido pensadas para garantir que houvesse algum nível de reparação das violações até então sofridas ou mesmo que garantissem sua inserção, em condições de dignidade, na sociedade brasileira da época.

Após a abolição, temos o silenciamento absoluto do Estado sobre as condições de sobrevivência e a existência dessas comunidades por todo o território brasileiro, sendo tratada sobretudo no âmbito dos movimentos negros, que anunciavam que os antigos quilombos não haviam sido integralmente desconstituídos ou que não se poderia falar de um único modelo. Por todo o século XX, essas comunidades foram invisibilizadas, mas produziram suas estratégias de sobrevivência, com a manutenção dos vínculos comunitários, sua cultura e modos de vida diferenciados, enlaçados a  um território, ainda que, não raras vezes, tenham sido submetidas a inúmeras diásporas, marcadas por assassinatos, expulsões, ameaças, tomada de seus territórios tradicionais, destruição de seus locais e memória e cultura, de seus monumentos e tentativa de destruição de suas condições de reprodução física, social e cultural.

É nesse quadro que a Constituição de 1988 constitui um marco de virada importante dos projetos de Estado que estavam em disputa em 1987, na Assembleia Nacional Constituinte. Os movimentos sociais negros, as associações negras e populares, diversos setores da sociedade civil organizada disputaram acirradamente os dispositivos constitucionais que tratariam da questão da terra, lutando por um artigo que pudesse contemplar as comunidades das “terras de preto”, “as comunidades negras rurais”, “as comunidades remanescentes de quilombos”, com direitos territoriais sobre os territórios tradicionais, bem como de proteção aos seus modos de viver, fazer e criar. É nesse sentido que se inscreve, no artigo 68 do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias (ADCT), o direito fundamental quilombola ao território e, nos artigos 215 e 216 da CF/1988, a proteção dos seus modos diferenciados de viver, fazer e criar.


Acesso ao direito constitucional negado

Após 1988, frágeis medidas foram promovidas para efetivação desse direito. Muitos atores participaram do processo de mobilização em torno do direito quilombola, mas foi a organização do movimento quilombola em  nível nacional que deu a essa luta a dimensão que ela tem hoje no Brasil. Não é possível falar em projeto de sociedade e de Estado no Brasil, hoje, sem considerar essas comunidades, que, de acordo com o IBGE, constituem mais de 5.972 localidades e, de acordo com a Conaq, mais de 6.300 comunidades, com mais de 16 milhões de quilombolas nos territórios.

Os novos pactos constitucionais não deram conta dos velhos atores que estavam em cena nesse momento, e, por isso, nos 32 anos de Constituição Federal de 1988, não vemos efetivamente as comunidades quilombolas sendo consideradas sujeitos de direitos.  De fato, o Decreto nº 4887/2003, importante marco de produção da política pública quilombola, não por acaso, foi alvo de uma Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI 3239) proposta pelos velhos atores, na época reunidos no Partido da Frente Liberal (PFL), atual Democratas, requerendo que o STF declarasse o decreto inconstitucional. Essa ação ficou 14 anos em julgamento no âmbito do STF, sendo o decreto julgado constitucional em fevereiro de 2018. Foi, sem dúvida alguma, uma importante vitória do movimento quilombola e de outros,  uma afirmação importante da política pública e do reconhecimento desses grupos como sujeitos de direito, sendo o art. 68 considerado de eficácia plena e imediata.

Se, durante suas trajetórias, as comunidades quilombolas passaram das repressões ao lugar de invisibilidade de suas múltiplas formações e diversidade, quando alcançado com muita luta o reconhecimento constitucional,  ao mesmo tempo, vivenciam  investidas contra sua existência. De fato, vemos suas condições de reprodução física, étnica, cultural e social serem, deliberada e organizadamente, precarizadas e desconstituídas. É o que o filósofo camaronês Achille Mbembe chamou de necropolítica, que, nesse caso, assume as formas de uma guerra infraestrutural, em que, organizadamente, são destruídas todas as condições e fatores que permitiriam ao grupo permanecer existindo. Vale dizer que se trata de uma existência que não é apenas física, mas do direito de existir enquanto grupo étnico-racial minoritário que é.

De acordo com a pesquisa nacional realizada pela Terra de Direitos e pela Conaq, Racismo e Violência contra Quilombos no Brasil (2018), o orçamento da política quilombola sempre esteve abaixo da demanda de reconhecimento e titulação dos territórios. Na série histórica do orçamento da política, de 2010 a 2017, vemos que o maior orçamento apresentado por essa foi no ano de 2010, com 54. 200.000 milhões de reais destinados para desapropriações para fins de titulação de comunidades quilombolas. Entretanto, naquele mesmo ano, o que foi efetivamente executado pelo governo federal foi apenas 25.879.611 milhões, ou seja, menos da metade do que havia sido destinado.

Entre outras questões, que passam pelo próprio lugar da política no Estado brasileiro, isso  se deve aos muitos limites da autarquia federal responsável pelos procedimentos de regularização de territórios quilombolas, cujo trâmite exige muitas e complexas fases de elaboração, que demandam aportes muito mais robustos de fortalecimento do Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra). Os  primeiros concursos para a composição do quadro de antropólogas e antropólogos do órgão ocorreram somente em  2005 e, desde então, não houve uma regularidade na abertura de novos concursos, condizente com a demanda existente. A falta de centralidade do fortalecimento da política quilombola no âmbito do Estado brasileiro representa uma manifestação explícita dos racismos institucional e estrutural que organizam a relação do Estado com esse grupo.

Além disso, o Incra  vivencia um processo de desmonte de sua estrutura e capacidade operativa, cujo principal marco recente consiste na extinção do Ministério do Desenvolvimento Agrário (MDA), em 12 de maio de 2016, por meio  da medida provisória nº 726, que alterou e revogou a Lei nº 10.683, de 28 de maio de 2003, transferindo, naquele momento, suas competências para o Ministério do Desenvolvimento Social (MDS) e atribuições para a Secretaria Especial de Agricultura Familiar e do Desenvolvimento Agrário da Casa Civil da Presidência da República (Sead) do Brasil, criada em 27 de maio de 2016, pelo decreto n° 8.780. Posteriormente, a Secretaria Especial de Agricultura Familiar e do Desenvolvimento Agrário da Casa Civil da Presidência da República foi extinta pela Lei nº 13.844, de 18 de junho de 2019, sendo, ao mesmo tempo, passadas as suas atribuições para a Secretaria Especial de Assuntos Fundiários. Essa Secretaria é liderada por Nabhan Garcia, pecuarista e ex-presidente da União Democrática Ruralista (UDR), vinculada ao Ministério da Agricultura, Pecuária e Abastecimento (MAPA), pasta ministerial composta principalmente por setores antagônicos à Política Quilombola.

Desmonte da política agrária

A eleição de Jair Bolsonaro em 2018 aprofundou, sem precedentes, o desmonte da política, na medida em que o Presidente eleito tinha, como um dos elementos de sua campanha, o desinvestimento na Política Quilombola, quando informou ao conjunto da sociedade que não investiria nenhum centavo em indígenas e quilombolas.  O cenário de guerra infraestrutural contra quilombolas estava configurado, quando chegou a pandemia, fazendo dos quilombos hiper vulneráveis não apenas a todos os efeitos da pandemia – como desemprego, insegurança alimentar, ampliação dos riscos de agravamento de doenças pré-existentes, sofrendo risco de despejos em seus territórios etc – mas também gerando vulnerabilidades específicas para esse grupo, que sofre duplamente, posto que enfrenta a precariedade das políticas voltadas para a população negra e, ainda, sofre com a possibilidade de se ver expulso de seus territórios, de não ter meios de manter a sua reprodução física, cultural, étnica e social, o que pode gerar ainda maior diáspora e desagregação do grupo étnico-racial.

Durante a pandemia, o Ministério da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos estabeleceu a aquisição e distribuição de 14.618 cestas básicas, voltadas para 7.309 famílias quilombolas apenas, sendo 02 cestas básicas por família. Isso significa um número pífio de cestas a um número mínimo de famílias quilombolas, considerando a quantidade de localidades quilombolas identificadas no levantamento do IBGE,  permitindo-nos perceber a explícita violação a preceito fundamental, na medida em que revela a omissão do Estado frente aos direitos constitucionais fundamentais à vida e à saúde da população quilombola.

A insegurança fundiária imposta aos quilombolas pode ser percebida também em números, pois apenas 5,34% das localidades quilombolas mapeadas pelo IBGE possuem o título de propriedade definitiva expedido por órgãos do Poder Executivo Federal ou Estadual, nos termos do que preceitua o art. 68 do ADCT, da Constituição Federal. Do total de títulos emitidos, apenas 129 foram expedidos pelo Incra, resguardando o direito fundamental de apenas 2,16% das localidades quilombolas identificadas pelo IBGE. Por isso, um dos pedidos da ADPF foi justamente que “sejam nacionalmente suspensos os processos judiciais, notadamente ações possessórias, reivindicatórias de propriedade, imissões na posse, anulatórias de processos administrativos de titulação, bem como os recursos vinculados a essas ações, sem prejuízo dos direitos territoriais das comunidades quilombolas”.

O que dissemos na petição inicial da ADPF continua na ordem do dia:

“É a própria organização quilombola de incidência nacional que conta às pessoas negras quilombolas as trajetórias de luta, as memórias ancestrais e o sonho de um dia verem seus territórios titulados, que se perderam desde o início da pandemia. Isso significa que, apesar de todo o esforço autônomo e corajoso feito pela CONAQ, há notória subnotificação e explícita omissão dos poderes públicos responsáveis pelo monitoramento e consequente falta de proposição de medidas destinadas a proteger as vidas quilombolas. Vê-se que é necessário defender o óbvio: vidas quilombolas importam!”

De acordo com levantamento autônomo feito pela Conaq, diante da omissão do Estado, atualmente, sabe-se de 1.214 casos monitorados, 4.541 casos confirmados e 160 óbitos confirmados entre quilombolas, dado esse subnotificado.

 

Maira Moreira é assessora jurídica da Terra de Direitos, doutoranda em Teoria do Estado e Direito Constitucional pela PUC-Rio

Vercilene Dias é assessora jurídica da Terra de Direitos, mestre em direito pela UFG e integrante da Comunidade Quilombola Kalunga



Ações: Quilombolas
Eixos: Democratização da justica e garantia dos direitos humanos