Com lacunas e irregularidades no licenciamento, número de portos no Tapajós (PA) dobra em 10 anos
Assessoria de comunicação Terra de Direitos
Dos 27 portos em operação no Tapajós ao menos metade cometeu alguma irregularidade no processo de licenciamento ambiental. Falta de transparência ambiental e violações de direitos de povos tradicionais também foram identificados
As margens do Rio Tapajós, no oeste do Pará, estão tomadas por empreendimentos portuários projetados para o transporte de grãos do Centro-oeste do país. O crescimento acelerado das instalações portuárias na região do Tapajós – principalmente após a criação da Lei de Portos (nº 12.815), em 2013 – conta com uma série de lacunas e irregularidades nos processos de licenciamento ambiental, como a não realização de estudos de impacto ambiental, falta de consulta prévia, entre outros, que contribuíram com as violações de direitos de povos e comunidades tradicionais. É o que revela o estudo Portos e Licenciamento Ambiental no Tapajós: irregularidades e violação de direitos, lançado nesta terça-feira (23) organização Terra de Direitos. O dossiê integra uma plataforma online sobre o tema.
O estudo analisa as instalações portuárias nos municípios de Santarém, Itaituba e Rurópolis, que são cidades-chave na cadeia logística do agronegócio e funcionam como ponto final de escoamento da produção graneleira exportada para o mercado internacional. Foram considerados na pesquisa apenas portos de cargas (grãos, fertilizantes e outros insumos do setor), não incluindo portos para o turismo ou transporte de pessoas.
O estudo identificou um total de 41 portos nos três munícipios até outubro de 2023 (período de coleta de dados). Desses, 27 estão em operação no momento e apenas 05 possuem a documentação completa do processo de licenciamento ambiental.
A análise das licenças ambientais presente no estudo partiu das informações buscadas pelo site da Secretaria de Meio Ambiente e Sustentabilidade do Pará (Semas) e por meio da Lei de Acesso à Informação (LAI). A busca apresentou baixo retorno e resultados, o que dá indícios que as licenças não existam. A falta de disponibilização, transparência e divulgação dos documentos necessários para a concessão das licenças é uma das importantes violações de direitos apontadas no estudo.
Dados do estudo da Terra de Direitos mostram que até 2013 (sem a Lei de Portos) a região do Tapajós possuía 20 portos previstos, em construção ou em operação nos munícipios paraenses de Itaituba, Santarém e Rurópolis. Dez anos depois da Lei, ou seja, ao final de 2023, esse número mais que duplicou, chegando a 41 portos – um aumento de 105%.
Com 14 portos em operação, 6 previstos e 2 em construção, Itaituba concentra mais de 50% do total de 41 portos analisados.
O município vem sendo considerado central no processo de migração de instalações portuárias das regiões Centro-oeste, Sul e Sudeste como parte de uma estratégia global de traders de commodities (grandes empresas de investimento) agrícolas na diminuição de custos, devido à localização do município ser mais próxima de mercados internacionais e pelas boas condições de navegabilidade do Rio Tapajós.
Irregularidades no Licenciamento Ambiental
O licenciamento ambiental é um instrumento institucional que determina a realização de estudos prévios para a instalação de atividades ou obras com potencial de causar degradação ao meio ambiente. O início do licenciamento ambiental é uma etapa essencial e, no caso dos 41 portos mapeados, obrigatório para a instalação dos empreendimentos.
Segundo estudo de Terra de Direitos, dos 27 portos em operação na região foi encontrada a documentação completa (O Estudo de Impacto Ambiental - EIA e o Relatório de Impacto Ambiental – RIMA, Licença Prévia, Licença de Instalação e Licença de Operação) de apenas 5 empreendimentos.
Outros 4 portos possuem as 3 licenças – prévia, de instalação e de operação – completas, mas sem apresentar os estudos de impacto ambiental.
Os EIA e RIMA são o primeiro passo do processo de licenciamento e são considerados pré-requisitos indispensáveis à concessão de Licença Prévia para instalação de um porto. A realização dos estudos ambientais é essencial para mensurar os impactos da construção e operação dos portos para o meio ambiente e para as comunidades do entorno do empreendimento.
Dos 27 portos em operação, 16 possuem Licença de Operação sem apresentar Licença Prévia ou Licença de Instalação.
Foi constatado que todos os processos de licenciamento analisados no estudo até outubro de 2023 apresentaram irregularidades que contrariam algum dispositivo da legislação do Pará. A Secretaria de Meio Ambiente e Sustentabilidade do Pará (Semas) é o órgão responsável por realizar e conceder as licenças.
“Há duas dificuldades no licenciamento ambiental hoje no Brasil e que são potencializadas na Amazônia e, consequentemente, no território do Tapajós. A primeira é a falsa interpretação de que o licenciamento, com todas as etapas que lhe são inerentes, é opcional. A legislação vigente deixa nítido que o processo é obrigatório e deve iniciar anteriormente à instalação de quaisquer atividades potencialmente poluidoras – no caso do estudo da Terra de Direitos, todos os empreendimentos analisados. Com um órgão licenciador de pouca ou nenhuma fiscalização e transparência do processo de licenciamento, as empresas têm caminhado pelo licenciamento corretivo, que deveria ser exceção, mas tem se tornado regra. Este é o caminho mais curto e barato para as empresas, e que produz as maiores violações de direitos humanos e danos socioambientais irreparáveis. A segunda é a compreensão atrasada de que o licenciamento serve para proteger um meio ambiente sem gente. Hoje, há uma interpretação sistêmica dos direitos sociais, culturais e ambientais no texto constitucional, que exige que o processo de licenciamento seja entendido como garantidor de direitos socioambientais, ou seja, de direitos que são também das pessoas, que muitas vezes se organizam coletivamente em povos, e da natureza", destaca a assessora jurídica da Terra de Direitos, Bruna Balbi.
A análise dos processos de licenciamento ambiental das instalações portuárias na região revela uma grande lacuna de licenças e estudos na maior parte dos empreendimentos encontrados, ou seja, a instalação desses portos acontece em meio a uma série de irregularidades, indícios de falta de fiscalização e omissão dos órgãos ambientais.
Do descumprimento da legislação federal e estadual sobre licenciamento ambiental e portos até tratados internacionais – como é o caso da Convenção 169 da Organização Internacional do Trabalho (que versa sobre o direito à consulta prévia de povos e comunidades tradicionais) e da Convenção da Diversidade Biológica (que estabelece o princípio da precaução para proteção ambiental) – , o estudo evidencia que a violação de direitos têm sido a base dos processos de licenciamento ambiental dos portos instalados no Tapajós.
A partir da análise das licenças ambientais dos portos do Tapajós, o estudo identifica que houve um avanço desenfreado de obras de infraestrutura e logística, que contou com o atropelamento de regras para dar celeridade às obras de instalação portuária e as operações dos portos.
Algumas recomendações ao Estado e instituições são propostas pelo estudo da Terra de Direitos, como a garantia da consulta prévia, livre e informada a grupos étnicos da região do Tapajós, medidas de reparação dos danos negativos dos portos instalados e a fiscalização efetiva do licenciamento ambiental.
Povos Impactados
O estudo de Terra de Direitos pontua que os danos e as transformações provocadas pela instalação dos portos no Tapajós não podem ser vistos de forma isolada. Ao avaliar os impactos é preciso considerar todo o complexo logístico e os danos acumulados dos empreendimentos ao meio ambiente e, também, aos modos de vida de povos tradicionais.
São indígenas, quilombolas, pescadores artesanais, agricultores familiares, ribeirinhos e outras comunidades tradicionais que convivem com o resultado negativo e os impactos da acelerada instalação e intensa operação de empreendimentos portuários com irregularidades no licenciamento ambiental.
Maria Ivete Bastos, trabalhadora rural e presidenta do Sindicato de Trabalhadores Rurais, Agricultores e Agricultoras Familiares de Santarém (STTR) conhece bem esse cenário. Ela conta que com os portos vieram também incentivos ao monocultivo de grãos que expandiram os latifúndios na região.
“Os impactos negativos que os portos trouxeram já fazem um tempo... Primeiro, como exemplo da Cargill em Santarém, é que a chegada dos portos proporcionou também o apoio, financiamento e todo o fortalecimento da logística para que os sojicultores viessem de outras regiões, tendo em vista que Santarém não era um polo de produção de soja”, conta.
Esse estímulo ao monocultivo na região, apontado pela trabalhadora rural, reforça a perspectiva trazida no estudo de Terra de Direitos de que os portos não chegam sozinhos ao território. Toda uma cadeia logística e de infraestrutura é criada para garantir o apoio e desenvolvimento do agronegócio graneleiro, o que transforma as dinâmicas sociais, econômicas e culturais, além de impactar fortemente o modo de vida de povos e comunidades tradicionais.
“O primeiro impacto foi a expulsão dos trabalhadores da terra porque a maioria não tinha documento de sua terra, eram apenas posseiros. Segundo, foi extinguindo também algumas comunidades, alguns igarapés foram poluídos, as pessoas foram ficando sem acesso por conta das cercas de arame farpado ou porque eles iam comprando [terras] de um, de outro ou expulsando porque as pessoas não se mantêm se não tiver as políticas públicas e a legalização das terras, então elas acabaram ficando vulneráveis e muitos saíram para a cidade”, conta.
Nenhum dos 41 portos identificados no estudo realizou o processo de consulta prévia livre e informada garantida aos povos e comunidades tradicionais determinado pela Convenção 169 da Organização Internacional do Trabalho, revela o estudo.
O tratado internacional ratificado pelo Brasil em 2004 determina que esses grupos sejam previamente ouvidos no caso de obras, empreendimentos ou medidas administrativas que possam afetar seus territórios ou modo de vida.
Cargill – o primeiro porto
A Cargill foi o primeiro porto instalado no Tapajós com o objetivo de escoar a produção do agronegócio, em 2003. A empresa começou a operar em Santarém sem apresentar os Estudos de Impacto Ambiental, que só foram produzidos em 2008 após intensa mobilização e denúncias a justiça feitas por movimentos sociais e povos tradicionais.
Os impactos da Cargill em Santarém são denunciados constantemente há anos pelos povos e comunidades tradicionais, movimentos e organizações sociais. As denúncias tratam das irregularidades cometidas no processo de licenciamento ambiental e das violações de direitos, como a falta de consulta prévia, livre e informada, a destruição da praia urbana de Vera Paz (antes localizada na orla da cidade onde hoje está o porto) e sobre as responsabilidades da empresa quanto a contribuição para a crise do clima no planeta, como pontua Maria Ivete.
“Essas tantas carretas que estão jogando combustíveis fosseis também contribuem para o aquecimento que hoje nós estamos passando a maior estiagem da história com a seca que matou nossa plantação, secou os rios e impossibilitou a nossa sustentabilidade durante esse período e ainda não acabou. A gente tá vivendo esse drama da crise climática e esses portos cada vez mais avançam e outros estão sendo instalados na região. Então os impactos são muito danosos na nossa vida porque não é simplesmente ter um porto, é o que vai ser passado por ali, o que vai estimular e o que pode acontecer com os seres humanos que resolvem permanecer no território”.
A chegada do porto da Cargill em Santarém também foi um dos fatores que impulsionou o desmatamento e a produção de soja na região. O fato de haver uma empresa que comprasse localmente a produção foi um grande incentivo para os produtores de grão.
Mudanças no uso da terra ao longo dos anos na região de Santarém
Para comparar os anos, arraste o círculo preto para o lado
O estudo e investigação dos impactos causados pelos dois portos da Cargill (Santarém e Itaituba) no Tapajós podem ser encontrados no site “Sem Licença Para Cargill” elaborado pela Terra de Direitos.
Portal Portos no Tapajós
O estudo Portos e Licenciamento Ambiental no Tapajós: irregularidades e violação de direitos integra a plataforma online Portos no Tapajós que reúne informações do licenciamento ambiental de 41 portos (públicos e privados) que estão previstos, em construção ou em operação nas cidades de Santarém, Itaituba e Rurópolis, localizadas no oeste do Pará. Os dados foram coletados da Agência Nacional de Transportes Aquaviários (Antaq), da Secretaria de Meio Ambiental e Sustentabilidade do Pará (Semas) e diários oficiais.
O site contém também dados anuais e cumulativos sobre desmatamento e queimadas que são conectados com as informações dos portos na região possibilitando observar como, no decorrer dos anos com a chegada dos portos, a paisagem territorial da região foi sendo modificada.
Além dos portos estão identificados no mapa do site as unidades de conservação (UCs), terras indígenas, territórios quilombolas e comunidades tradicionais do Tapajós nos municípios de Santarém, Itaituba e Rurópolis.
Com a ferramenta de filtros disponíveis é possível observar como estes dados se relacionam e se conectam no cenário da região. O portal permite realizar inúmeras combinações para a realização de análises específicas.
Conheça o portal
Ações: Empresas e Violações dos Direitos Humanos
Eixos: Terra, território e justiça espacial