Relator especial da ONU alerta para a rara responsabilização de violência cometidas por policiais contra civis
Assessoria de comunicação Terra de Direitos
Massacres dos servidores públicos do Paraná e dos trabalhadores rurais figuram como exemplos recentes de impunidade da violência policial.
A rara busca por responsabilização pelo Estado das violações de direitos cometidas por policiais contra civis encoraja e perpetua novas práticas de violência. Esse foi um dos alertas feitos pelo Relator Especial para a Promoção da Verdade, Justiça e Reparação e Garantia de Não Repetição da Organização das Nações Unidas (ONU), Bernard Duhaime, em coletiva de imprensa na tarde desta segunda-feira (07), no Rio de Janeiro (RJ).
O informe partilhado com os jornalistas compõe as observações preliminares do relator sobre a visita ao Brasil, nos dias 30 de março a 7 de abril, para escuta a diferentes organizações sociais, defensores e defensoras de direitos humanos, órgãos do Estado e do sistema de justiça, além de visita a locais de repressão, antigos centros de detenção e arquivos históricos. O objetivo da relatoria especial foi o de avaliar as medidas adotadas pelo país para enfrentar as graves violações de direitos humanos cometidas durante a ditadura civil-militar (1964-1985). Em setembro desse ano o relator deve apresentar o relatório completo ao Conselho de Direitos Humanos da ONU.
De acordo com as organizações sociais, passados quase quarenta anos do fim oficial da ditadura civil-militar brasileira, persistem as violências cometidas por agentes de segurança pública do Estado contra civis. “Execuções sumárias, tortura e detenções arbitrárias continuam a permear a sociedade brasileira em taxas alarmantes, afetando particularmente povos indígenas, camponeses e pessoas afrodescendentes”, aponta o relator nas observações preliminares.
Para Duhaime, a permanência das violências e da cultura de impunidade que a acompanham são reflexos da não revisão das instituições militares. “A reforma das instituições envolvidas em violações de direitos humanos durante a ditadura é um princípio crucial da justiça de transição que visa prevenir a recorrência da violência. No entanto, tais processos não foram priorizados durante o período de transição do Brasil”, enfatiza.
“A revisão das competências da Justiça Militar é um importante passo para avançarmos no processo da justiça de transição. O Estado brasileiro precisa adotar medidas que caminhem na direção do enfrentamento dessa realidade de violência, pois as violações cometidas por militares no período da ditadura civil-militar se repetem no período democrático quase sem responsabilização e sem respostas à altura”, destaca a coordenadora de incidência política da Terra de Direitos, Gisele Barbieri. Ela enfatiza que as organizações sociais aguardam, desde 2018, o julgamento da Ação Direta de Constitucionalidade (ADI) 5901 pelo Supremo Tribunal Federal (STF). A ação ajuizada pelo Partido Socialismo e Liberdade (PSOL) questiona dispositivos do Código Penal Militar referentes à competência da Justiça Militar para julgar crimes dolosos cometidos por militares das Forças Armadas contra civis. A organização entregou um informe para o relator.
Não responsabilização da violência policial
Na avaliação da organização Terra de Direitos, a leitura do relator especial converge com a recente condenação do Estado brasileiro pela Corte Interamericana de Direitos Humanos, no Caso Tavares vs Brasil. Em março do ano passado a Corte IDH sentenciou o país a adequar, no prazo de um ano, suas normativas para que a justiça militar deixe de ter a competência para investigar e julgar militares que cometam crimes contra civis.
A determinação da Corte busca garantir medidas de não repetição de cenários ainda presentes e enfrentar o quadro de impunidade do assassinato do camponês Antonio Tavares e os mais de 200 feridos pela Polícia Militar do Paraná, em 02 de maio de 2000. Na data a Polícia Militar, organizada em uma tropa de 1500 agentes e sob comando do governador à época, Jaime Lerner (antigo DEM), bloqueou a BR-277 e impediu – à bala – a chegada da comitiva de 50 ônibus com trabalhadores rurais a Curitiba. O grupo pretendia realizar uma manifestação em defesa da reforma agrária. Todas as ações na justiça militar e comum de investigação dos responsáveis pelo assassinato do trabalhador rural foram arquivadas. As agressões às mais de 200 vítimas nunca foram investigadas. O mesmo quadro de impunidade marca a busca por justiça pelas violações de direitos cometidas pelo Estado no “Massacre de 29 de abril”.
No dia 29 de abril de 2015, o Governo do Estado do Paraná, sob comando de Beto Richa (PSDB), reprimiu violentamente os cerca de 40 mil manifestantes – entre eles servidores públicos e estudantes – que protestavam contra projetos de lei elaborados pelo governo estadual e encaminhado à Assembleia Legislativa do Paraná (Alep) para votação. Estes projetos de lei traziam significativas alterações ao regime trabalhista e previdenciário dos servidores públicos do estado, pondo em risco, por exemplo, a aposentadoria dos servidores.
Na “Operação Centro Cívico”, implementada pela Polícia Militar do Paraná para atender às ordens do então Secretário Estadual de Segurança Pública, Fernando Francischini, foram designados 2.516 policiais, utilizados atiradores de elite, cães, canhões de água, helicópteros e disparadas 2.323 balas de borracha, 1.413 bombas de gás ou de efeito moral e 25 garrafas de spray de pimenta, numa ação de gasto de R$ 948 mil aos cofres públicos. Ao menos 237 pessoas ficaram feridas e cerca de 14 manifestantes foram detidos, muitos deles sem justificativa legal clara.
Com mesmo argumento utilizado pela justiça no Caso Tavares, de “estrito cumprimento do dever legal”, as ações para responsabilização das condutas dos policiais foram arquivadas. As ações ajuizadas para indenização das vítimas também foram suspensas com a admissão pela Tribunal de Justiça do Paraná da aplicação de um Incidente de Resolução de Demandas Repetitivas (IRDR), a pedido do Governo do Paraná. Com isso, todas as ações se encontram paralisadas ou arquivadas. Sem resposta pela justiça brasileira, o caso foi denunciado à Comissão Interamericana de Direitos Humanos (CIDH), em maio de 2024.
Os dois casos foram relatados à relatoria especial pela organização Terra de Direitos. “São inúmeros os flagrantes de violações de direitos humanos, por parte dos agentes de segurança, presentes nos dois casos relatados e que se repetem em vários outros casos no Brasil, seja em territórios rurais ou urbanos, e que, como já pontuado, promovem um exacerbamento da cultura de impunidade”, aponta o informe da organização.
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Ações: Democratização da Justiça
Casos Emblemáticos: Antonio Tavares
Eixos: Política e cultura dos direitos humanos