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Comunidades do Vale do Acará (PA): a resistência pela ancestralidade diante do agronegócio do dendê


Quilombolas vivenciam a necessidade de autorização da empresa Agropalma para acessar seus cemitérios e velar seus ancestrais.

“Quando a gente pega uma semente e planta, aquela semente nasce, você vai ter o máximo de cuidado com o crescimento daquela árvore. Então vai chegar uma época que ela vai crescer e depois desistir, mas aí quando aquela árvore se acaba fica a raiz na terra”.  

É dessa forma – que exemplifica bem o reconhecimento da relação entre trajetória, tempo e ancestralidade – , que Ana Maria Pimenta, quilombola do Vale do Acará, no Pará, inicia a entrevista sobre a luta das comunidades no alto rio Acará e a violação de direitos territoriais e de preservação da memória.  

Nos últimos dias, cemitérios de várias cidades do Brasil passaram por limpezas para receber hoje, dia de Finados, as visitas de pessoas que irão prestar homenagens e velar familiares e amigos que já partiram. Enquanto isso, no Acará, município no nordeste do Pará, dona Ana e inúmeras famílias de quilombolas vivenciam a necessidade de autorização de uma empresa para acessar seus cemitérios tradicionais e a incerteza se conseguirão velar seus mortos em paz por conta dos conflitos que cercam o território.  

A empresa em questão é a Agropalma S. A, que se autodescreve como a maior produtora de óleo de dendê da América Latina, e possui cerca de 107 mil hectares de terra entre as cidades de Tailândia e Acará. O que a empresa não conta em seu site oficial é que parte dessas terras eram públicas e foram adquiridas por meio de grilagem e registros fraudulentos em cartórios falsos – como indicou a decisão do Tribunal de Justiça do Pará que cancelou as matrículas das fazendas Roda de Fogo e Castanheira. 

Além dessas irregularidades, consta também no histórico da empresa a expropriação e desterritorialização das comunidades quilombolas dessas áreas a partir dos anos 1980, quando a Agropalma chega à região. Segundo Elielson Silva e Maria Saavedra, pesquisadores do Projeto Nova Cartografia Social da Amazônia do Núcleo de Altos Estudos Amazônicos da Universidade Federal do Pará, esse processo foi realizado por terceiros à serviço da empresa de dendê. E assim a empresa se expandiu no nordeste paraense.  

Uma das comunidades expropriadas e extinta pelo avanço da monocultura do dendê foi a da Vila de Nossa Senhora da Batalha. Hoje, onde estava localizada a comunidade, fica a área de reserva florestal mantida pela Agropalma e sob a qual alega posse.  

Nascida na antiga Vila, dona Ana Maria relembra com saudade de como era a vida no território onde viveu com seus 11 irmãos. Ela conta que a família cresceu se mantendo da criação de animais, do roçado e da pescaria no rio Acará, mas relata que atualmente isso tudo é proibido pela empresa que possui seguranças particulares 24 horas na vigilância do território, rios e demais áreas.  

É próximo às margens do rio Acará e em meio a esta floresta de reserva, que está localizado o Cemitério de Nossa Senhora da Batalha, um dos poucos locais onde ainda se encontra resquícios do que foi a vila quilombola. Além deste, a área também abriga outros três cemitérios: do Livramento, Santo Antônio e um cemitério Indígena da etnia Tembé.  

Com a proximidade do Dia de Finados, dona Ana e as demais famílias com parentes enterrados no cemitério Nossa Senhora da Batalha vivenciam de forma intensa o sentimento de ter o seu direito constitucional ao território tradicional violado e da mesma forma o direito à preservação da memória, da resistência e da ancestralidade de seus entes queridos.  

“A nossa raiz está plantada lá [em Nossa Senhora da Batalha]. Meu pai está enterrado lá, meu tio e sobrinho”, declara dona Ana Maria Pimenta.  

O acesso das famílias quilombolas aos cemitérios é dificultado e limitado pela empresa. Atualmente os quilombolas moram em Vilas que foram criadas após o processo de desterritorialização. Dona Ana, por exemplo, mora na Vila dos Palmares, distante cerca de três horas do cemitério. 

Para além da distância, a empresa possui uma portaria com seguranças particulares que controla o acesso dos quilombolas ao território. Para entrar eles precisam passar por dois pontos de fiscalização, apresentar documento de identificação e só então são autorizados.   

Dona Ana relata também que existem lanchas que patrulham os rios e, mais recentemente, uma torre de vigilância que filma a movimentação da comunidade na área. O momento que deveria ser de reflexão, luto, emoção e oração das famílias quilombolas torna-se tenso, controlado e passível de conflito com a grande empresa do agronegócio do dendê.  

Segundo Selma Corrêa, assessoria jurídica da Terra de Direitos, que acompanha as comunidades do Vale do Acará por meio da Coordenação das Associações das Comunidades Remanescentes de Quilombos do Pará (Malungu), o Dia de Finados para as comunidades do Vale do Acará representa um momento de resistência, mas também de riscos aos quilombolas.  

“O dia 02 de novembro é um marco histórico para essas comunidades quilombolas, pois é o dia que representa força e resistência e ao mesmo tempo representa vulnerabilidade e riscos. Riscos de prisões arbitrárias, violência física, moral e cultural. De um lado a luta pelo direito de acessar o local que guarda a evidência material de ocupação tradicional quilombola, de outro, o fechamento de acesso e obstrução de vias, que potencializam o conflito e coloca em risco a comunidade quilombola, que luta pela memória dos seus ancestrais e pela sua própria existência”, declara. 

Cemitério Nossa Senhora da Batalha. Foto: Elielson Silva

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Resistência e retomada  
Desde 2016, as comunidades quilombolas do Vale do Acará - representadas pela Associação dos Remanescentes de Quilombos da Comunidade de Balsa, Turiaçu, Gonçalves e Vila dos Palmares do Vale do Acará (ARQVA) -, reivindicam o retorno ao territorial tradicional onde estão localizados os cemitérios. A titulação do território ainda está em processo no Instituto de Terras do Pará (ITERPA), enquanto isso os conflitos se acirram e as violações de direitos aumentam. 

Para a assessoria jurídica da Terra de Direitos, Selma Corrêa, a demora na titulação é a causa dos conflitos, pois sem o título coletivo o território e as comunidades ficam vulneráveis diante da empresa.  

Em 2019, os quilombolas foram a área dos cemitérios para realizar a limpeza do local para os momentos de oração em novembro, mas foram surpreendidos por ameaças e coação por parte dos seguranças da Agropalma.  

O último caso de conflito envolvendo os quilombolas do Vale do Acará também teve a a preservação e a retomada dos cemitérios como foco. Diante do não cumprimento da decisão do Tribunal de Justiça do Pará, - que apontou a fraude nos títulos de posse da Agropalma nas áreas sobrepostas ao território tradicional -, cerca de 60 quilombolas iniciaram um processo de retomada do território. A empresa então entrou em conflito com as comunidades, abrindo valas nas estradas para impedir o deslocamento na área.  

O caso é objeto de uma Ação Civil Pública ajuizada pela Defensoria Agrária e pelo Ministério Público Estadual do Pará, que pediu que a justiça obrigasse a Agropalma a realizar a abertura das estradas, retirar as placas proibitivas e liberar o acesso aos cemitérios. Em audiência de acordo, a empresa se comprometeu eliminar as barricadas, tapar as valas e a não impedir o acesso aos cemitérios, no entanto, os moradores relatam que seguem tendo dificuldade para entrar e fazer a limpeza nesses locais sagrados.  

Hoje, em mais um Dia de Finados, dona Ana Maria Pimenta afirma que mesmo diante da vulnerabilidade e dos riscos, os quilombolas do Vale do Acará irão visitar seus entes queridos “Todo ano a gente tem que ir lá. É um pedaço da gente que tá lá”. 

E finaliza: “O meu desejo maior do meu coração é conquistar o que era nosso porque antes nós não éramos perturbados por ninguém. Nós queremos nosso território de volta. A gente não quer nada da Agropalma, a gente quer o que é nosso direito”.  



Ações: Quilombolas

Eixos: Política e cultura dos direitos humanos