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Mesmo com caráter emergencial, Projeto de lei que suspende remoções durante a pandemia tramita com lentidão


Protocolada em março de 2020, a medida legislativa avança a passos lentos. Desde então mais de 14 mil famílias foram despejadas.
Ocupação Cidade de Deus, em Sete Lagoas (MG), sofre com ameaça de despejo. Foto: Nivea Magno/Mídia Ninja

O Projeto de Lei 827/2020, que suspende medidas judiciais ou administrativas de despejo ou remoções de imóveis públicos e privados até o fim de 2021, devido à pandemia, tramita em caminho oposto à urgência de implementação da medida legislativa. Protocolada em março de 2020, início da crise epidemiológica no Brasil, a proposta avança lentamente no Congresso Nacional e encontra fortes resistências entre os parlamentares vinculados ao agronegócio e setor imobiliário - ainda que a permanência das pessoas em casa seja apontada, desde o princípio da pandemia, como uma das medidas mais seguras para a contenção do vírus. 

Na quinta-feira (23) o Senado aprovou o Projeto de Lei por 38 votos favoráveis a 36 contrários à medida. A proposta também apresentou um placar apertado na Câmara dos Deputados, com 263 votos favoráveis e 181 pela rejeição do PL, em votação realizada no dia 18 de maio. 

Com a aprovação pelo Senado, o PL de coautoria das deputadas federais Natália Bonavides (PT) e Professora Rosa Neide (PT) caminharia para a sanção presidencial, ato que encerra o trâmite legislativo e permitiria que a suspensão dos despejos durante a pandemia fosse lei. No entanto, os senadores acolheram um destaque - uma sugestão de alteração na redação - proposto pelo senador Luís Carlos Heinze (PP-RS), que exclui os imóveis rurais do âmbito do projeto. Pelo regimento legislativo, quando há modificação no texto, a proposta retorna à Câmara, onde teve início o PL, para nova apreciação dos deputados. A data ainda não foi definida pelo presidente da Câmara.  Com isso, a tramitação do Projeto de Lei segue se arrastando.

“A gente não sabe quando o PL vai entrar em pauta e quando será a votação pela Câmara. Teremos o recesso em julho [dos deputados]. Considerando que o prazo de vigência da aplicação da proposta é 31 de dezembro, nós corremos contra o tempo para que mais famílias não sejam despejadas durante a pandemia”, destaca o assessor jurídico do Centro Gaspar Garcia de Direitos Humanos, Benedito Barbosa.

A preocupação apontada por Barbosa em não acentuar um contexto de vulnerabilidade social com novos despejos dialoga com uma realidade já instalada: de março de 2020 a início de junho - período coincidente com a tramitação do Projeto de Lei -  mais de 14.300 famílias sofreram despejos ou remoções coletivas em áreas urbanas e rurais, de acordo com levantamento da Campanha Despejo Zero. 

Ainda que o projeto de lei não preveja medidas de mitigação de impactos para as famílias já despejadas, a sua aprovação pode garantir maior segurança e amparo legal ao quadro atual de mais de 84 mil famílias que estão hoje ameaçadas de remoção.

Com variantes ainda mais agressivas, colapso do sistema de saúde e lento ritmo de vacinação, a expulsão das famílias das suas residências - mesmo daquelas em condições precárias - aumenta a vulnerabilidade social deste grande contingente, avalia a Campanha Despejo Zero.

A suspensão dos despejos e remoções durante a pandemia é também objeto de ação no Supremo Tribunal Federal (STF). No início no mês de junho o ministro e relator da Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental 828, Roberto Barroso, concedeu liminar que determina a suspensão por seis meses - a contar da decisão judicial - de medidas administrativas ou judiciais que resultem em despejos, desocupações, remoções forçadas ou reintegrações de posse de ocupações realizadas até 20 de março de 2020. Com objeto semelhante à ADPF, mas abrangência mais ampla, o projeto de lei - caso aprovado - tem potencial de maior conhecimento pelo país. A aprovação do PL 827 configuraria, na avaliação das organizações sociais, maior amparo legal à suspensão dos despejos e remoções.

"O projeto de lei, além de ter um marco temporal protetivo maior, também prevê medidas importantes para o 'pós-pandemia', como a realização de mediação nos conflitos fundiários coletivos", destaca a assessora jurídica da Terra de Direitos, Daisy Ribeiro.

Indígenas que realizavam manifestação em frente à Câmara durante votação de PL 490 são duramente reprimidos. Foto: Matheus Veloso
Enfrentamento à pandemia nas prioridades legislativas
Desde que o Brasil entrou em estado de calamidade pública em decorrência da pandemia, em março do último ano, a população espera que o Congresso Nacional priorize a  apreciação e a votação de matérias que assegurem maiores condições para proteção e enfrentamento à Covid pela população e pelo Estado. 

De acordo com o monitoramento da Plataforma Política por Inteiro, no período de 01 de março de 2020 a 25 de junho deste ano, foram protocoladas 1.582 propostas legislativas pelos parlamentares ou pelo governo sobre diversos temas. Ainda que a tramitação dessas propostas no Congresso até a sanção presidencial envolva várias etapas, o número de medidas legislativas relacionadas à Covid já em vigor, como Lei, é mínima, bem distante do número total de propostas legislativas protocoladas desde início da pandemia: apenas 85, de acordo com próprio monitoramento do Congresso Nacional

“Desde a instalação do sistema remoto de votações no Congresso devido à pandemia, a prioridade dos parlamentares deveria estar voltada para propostas que atendam às necessidades da população pela pandemia da Covid-19. Porém, o que presenciamos é uma pauta que prioriza projetos que retiram direitos historicamente conquistados por trabalhadores, povos e comunidades tradicionais, deixando populações que já vivem em situação de vulnerabilidade ainda mais expostas. Um projeto de poder que visa atender 

interesses das bancadas ruralista, armamentista e conservadora do Congresso Nacional,  sem nenhum canal que permita a participação das populações afetadas por essas propostas nesses debates”, destaca a coordenadora de incidência legislativa da Terra de Direitos, Gisele Barbieri. 

Um forte exemplo de projetos de lei de retirada de direitos que avançam no Congresso, em plena pandemia e aumento da desigualdade, é o PL 490/2007. De forte interesse da bancada ruralista, o projeto de lei ameaça a demarcação de terras indígenas, abre as portas destes territórios para empreendimentos agropecuários, hidrelétricas, mineração, estradas e o garimpo. Em um cenário de intensa violência policial contra os indígenas nos arredores da Câmara dos Deputados e ausência de diálogo com quem será impactado pela medida, o PL foi aprovado pela Comissão de Constituição e Justiça (CCJ) da Câmara na última quarta-feira (23). 

Algumas propostas legislativas relacionadas à Covid esbarram no jogo de interesses de setores representados pelos parlamentares. Um forte exemplo é o Projeto de Lei 735/2020. Protocolado em março de 2020, a proposta previa medidas emergenciais de amparo aos agricultores familiares para mitigar os impactos socioeconômicos da Covid-19, como fomento de crédito e incentivos para a produção de alimentos. Após sucessivos adiamentos de inclusão do PL na pauta, a Câmara Federal aprovou a proposta no final de julho de 2020, e no Senado em agosto do mesmo ano. Depois de quase um mês, no ato da sanção presidencial, Jair Bolsonaro (sem partido) vetou ações estruturantes do Projeto de Lei, como a previsão de recursos para o Programa de Aquisição de Alimentos (PAA), a renegociação de dívidas de pequenos agricultores e a concessão de um auxílio emergencial de cinco parcelas no valor de R$ 600 para o segmento. A Câmara apreciou os vetos e os manteve. 

Com a descaracterização do Projeto de Lei pelos vetos mantidos pela Câmara dos Deputados, bases parlamentares de apoio à agricultura familiar elaboraram em março deste ano nova proposta legislativa com o resgate das medidas vetadas. Com nova roupagem, a proposta legislativa inscrita no PL 823/2021 sofre de uma história já conhecida: após vários adiamentos, a casa legislativa aprovou a medida no início de julho. Remetido ao Senado, o projeto de lei se encontra atualmente paralisado. 

Suspensão de despejos rurais
Com forte incidência no Senado e na Câmara para o lento trânsito das propostas de apoio aos agricultores familiares, foi também a bancada ruralista a articuladora para aprovação da emenda que suprimiu a suspensão dos despejos rurais na redação do PL 827/2020 - o que faz o Projeto de Lei deva ser remetido novamente à Câmara. Bancada mais expressiva no Congresso, os parlamentares vinculados à Frente Parlamentar da Agropecuária – um lobby bancado por associações e empresas do agronegócio - contabilizam 32 das 81 cadeiras no Senado. Com apoio da base do governo amparada nos argumentos de que a suspensão de despejos rurais viola o direito de propriedade e os efeitos da pandemia concentram-se no meio urbano, os ruralistas arregimentaram outros setores.

“Os interesses do agronegócio, ruralistas e da mineração falaram mais alto na votação no Senado”, lamenta a integrante da direção nacional do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem-Terra (MST), Kelli Mafort.

Exemplificador da lentidão impressa à tramitação do projeto de lei e interesses do agronegócio, o senador Oriovisto Guimarães (Podemos-PR) declarou durante a votação que “o projeto [de suspensão dos despejos] é inútil, uma perda de tempo e aumenta esse manicômio jurídico em que vivemos”. O Paraná, estado do parlamentar, está entre os cinco com mais famílias despejadas desde o início da pandemia - 731, de acordo com a Campanha Despejo Zero. Tanto Heinze quanto Guimaraes integram a Frente Parlamentar da Agropecuária. 

 




Eixos: Política e cultura dos direitos humanos