Justificando | O STF e os direitos territoriais quilombolas
Allyne Andrade é pesquisadora e membro da Articulação Justiça e Direitos Humanos (JusDh)
Layza Queiroz é assessora jurídica popular da organização Terra de Direitos
Larissa Vieira é advogada, Coletivo Margarida Alves e membro da Articulação Justiça e Direitos Humanos (JusDh)
Luciana Pivato é advogada e coordenadora da Terra de Direitos e membro da Articulação Justiça e Direitos Humanos (JusDh)
Em alguns dias, o Supremo Tribunal Federal julgará importante ação acerca dos direitos territoriais quilombolas. Nela, discute-se o direito das comunidades quilombolas à titulação de seus territórios e a imposição, ou não, de um marco temporal que determine o exato período de ocupação das terras quilombolas para que estes tenham reconhecidos o seu direito ao território.
A Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI) nº 3239, que tem a continuidade do julgamento marcada para o dia 18 de outubro, possui como autor o Partido da Frente Liberal (PFL) – sempre ele- , atual Democratas (DEM). A ADI questiona o Decreto nº 4.887/2003 que regulamenta o procedimento para identificação, reconhecimento, delimitação, demarcação e titulação das terras ocupadas por remanescentes das comunidades dos quilombos.
A Constituição, no Ato das Disposições Constitucionais Transitórias (ADCT) nº 68, reconhece a propriedade definitiva aos remanescentes das comunidades de quilombos, estabelecendo que o Estado deverá emitir os respectivos títulos de propriedade a estas comunidades, e o decreto supracitado é um dos instrumentos normativos que procura dar executividade ao comando constitucional.
Para além da questão técnica constitucional, é preciso entender do que, de quem e de quantos estamos falando quando tratamos de comunidades quilombolas:
As comunidades quilombolas podem ser definidas como grupos com trajetória histórica própria, cuja origem se refere a diferentes situações, a exemplo de doações de terras realizadas a partir da desagregação de monoculturas; compra de terras pelos próprios sujeitos, com o fim do sistema escravista; terras obtidas em troca da prestação de serviços; ou áreas ocupadas no processo de resistência ao sistema escravista. Em todos os casos, o território é a base da reprodução física, social, econômica e cultural da coletividade: a terra o é entendido como um bem comum daqueles que ali vivem.
Estima-se que, em todo o país, existam mais de três mil comunidades quilombolas. Atualmente, são 2.997 comunidades certificadas pela Fundação Cultural Palmares, reconhecidas pelo Estado como quilombolas. Dessas, só 258 detêm o título de propriedade.
De acordo com números oficiais[1], existem 214 mil famílias vivendo em localidades remanescentes de antigos quilombos, com quase 1 milhão de pessoas. Desse total, 92% se declaram pretos e pardos e, segundo o Ministério do Desenvolvimento Social, 75% vivem em situação de extrema pobreza. Um número alto diante da média nacional, de 8,5%. Ao cruzar dados do Desenvolvimento Social, do Censo 2010 e de outras instituições do governo, a Fundação Palmares, responsável pelo reconhecimento oficial dessas comunidades, constatou que 76% não dispõem de coleta de esgoto, 63% vivem em casas com piso de terra batida, 62% não têm acesso a água encanada e 24% não sabem ler e escrever. Estamos falando de uma população que tem raça/cor, classe social, modos de vida específicos e uma relação com o uso comum da terra. São essas pessoas que o julgamento do STF pode afetar.
No julgamento espera-se que o STF cumpra minimamente seu papel no sentido de proteger os direitos quilombolas, postulados constitucionalmente, inclusive. Até o presente momento, há dois votos. O antigo relator do caso, Ministro Cezar Peluso, votou pela procedência da ação e, portanto, pela inconstitucionalidade do decreto questionado. A Ministra Rosa Weber, por sua vez, votou pela constitucionalidade do decreto, porém estabeleceu um “marco temporal” para o reconhecimento da titulação, definindo que apenas territórios ocupados em 5 de outubro de 1988, data da promulgação da Constituição, são passíveis de demarcação.
Sabemos que a Constituição nada prevê em relação ao marco temporal, e qualquer entendimento nesse sentido seria nada menos que interpretar a Carta Magna em desfavor dos quilombolas, reforçando o racismo estrutural de nossa sociedade. Mais do que isso, seria construir uma ponte para o retrocesso. O decreto nº 3912 de 2001, revogado pelo atual (D. 4883/2003), institucionalizou o marco temporal como exigência do reconhecimento das comunidades e a única coisa que ele foi capaz de produzir foi a inefetividade do art. 68 do ADCT/88. A declaração de inconstitucionalidade, seria um duro golpe para política pública territorial quilombola que já sofreu cortes orçamentários e vem sendo sistematicamente desmontada pelo Governo Federal[2].
No Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra), órgão responsável pelo procedimento de titulação, há cerca de 1536 processos inconclusos de comunidades já reconhecidas como quilombolas. Todos esses processos estão praticamente paralisados pela falta de compromisso com a titulação das terras quilombolas.
É preciso destacar que a inconstitucionalidade do decreto representaria um retrocesso para o próprio STF. Em que pese sua falta de representatividade[3]– afinal, estamos falando de uma corte 100% branca – e dos retrocessos na área penal[4] ,que só servem ao encarceramento em massa que afeta desproporcionalmente a população negra, a Corte tem sido firme no reconhecimento de direitos étnicos. No julgamento da Ação Direta de Constitucionalidade (ADC) nº 41, a mesma Corte entendeu, por unanimidade, pela constitucionalidade da Lei nº 12.990/2014, que estabelece a reserva de 20% das vagas oferecidas nos concursos públicos para provimento de cargos efetivos e empregos públicos no âmbito da administração pública direta e indireta para negros/as.
A Articulação Justiça e Direitos Humanos (JusDh)[5] tem denunciado o sistema de Justiça por sua ação/omissão face ao racismo institucional e estrutural. E, nesse sentido, tem buscado relacionar, produzir informação e dialogar com a sociedade sobre a importância das ações anti-racistas, a exemplo das ações afirmativas, como meio para avançar na democratização da Justiça. De igual forma, entende que não há democratização completa do país sem o reconhecimento de direitos étnicos.
Tanto a Lei de Cotas como o Decreto nº 4.887/2003 são normativas que tratam do dever de reparação histórica da escravização e do racismo dela decorrente na sociedade brasileira. E é por isso que espera-se que o STF mantenha sua coerência e entenda pela improcedência da ADI nº 3239 — reconhecendo, assim, a constitucionalidade do Decreto nº 4.887/2003.
[1] Dados de 2014
[2] https://www.cartacapital.com.br/sociedade/numa-canetada-o-recuo-de-15-anos-na-politica-de-terras-quilombolas
[3] É sabido que no Brasil, temos uma magistratura composta majoritariamente por brancos/as: 84% da magistratura brasileira (juízes/as e desembargadores/as), dados CNJ. É flagrante a ausência de representatividade negra também no Ministério Público.
[4] https://www.cartacapital.com.br/sociedade/stf-mantem-prisao-a-partir-de-julgamento-na-2a-instancia
[5] A JusDh é uma rede composta por organizações de direitos humanos, movimentos sociais e ativistas que lutam pela democratização da Justiça. Veja mais em: http://www.jusdh.org.br/a-jusdh-2/
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Eixos: Democratização da justica e garantia dos direitos humanos, Terra, território e justiça espacial