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A cidade das pessoas: em defesa da função social da propriedade e da posse urbana


Ideias para uma nova agenda para as cidades

O Fórum Nacional de Reforma Urbana - FNRU divulga mais artigo visando contribuir com o debate em torno de uma nova agenda para as cidades, tendo em vista as eleições presidenciais, para os governos dos estados e para o Distrito Federal, e também a necessidade de construção de uma nova plataforma articuladora das forças democráticas e progressistas, frente aos retrocessos políticos e sociais que o país vem atravessando, com o crescente avanço das ideias neoliberais. Neste artigo, assinado por Orlando Santos Junior e Bendito Barbosa, o tema é a função social da propriedade.

A CIDADE DAS PESSOAS: EM DEFESA DA FUNÇÃO SOCIAL DA PROPRIEDADE E DA POSSE URBANA

Karla Moroso (CDES)
Benedito Roberto Barbosa (CMP)
Orlando Santos Junior (Observatório das Metrópoles)

A vida humana se encontra gravemente ameaçada sempre que submetida à lógica do livre mercado, baseada na racionalidade dos preços. Essa afirmação encontra fundamentação no estudo do historiador e antropólogo Karl Polanyi em torno das transformações ocorridas entre os séculos XIX e XX. Nesse período foram realizadas reformas políticas e econômicas visando a promoção da mercantilização do trabalho, da terra e do dinheiro � gerando efeitos perversos sobre a sociedade, em especial a pauperização e o crescimento das desigualdades � e contrarreformas, incorporando a adoção de mecanismos de proteção social, na tentativa de subordinar o �moinho satânico� do livre mercado a valores e normas fundamentais à vida social.

É fácil perceber a ameaça social que representa esse moinho satânico. Imaginemos todas as relações sociais mercantilizadas, com todos os comportamentos submetidos a lógica dos preços. O resultado seria o fim da sociedade, já que não existiriam valores e princípios, tais como a reciprocidade e a solidariedade, capazes de dar coesão ao agrupamento de indivíduos e à sociedade.

Pois bem, Polanyi argumenta que o trabalho (as atividades humanas necessárias à própria vida), a terra (o campo no qual se planta e o solo urbano, no qual se constroem as moradias e equipamentos público necessários a vida), e o dinheiro (símbolo de troca) não são na sua essência mercadorias. Ao contrário, são bens essenciais a reprodução social. Assim, a mercantilização do trabalho, da terra e do dinheiro representaria uma grave ameaça a vida humana. Uma ordem econômica deve ser uma função da ordem social, da qual ela faz parte, e portanto, deveria estar enraizada nos valores e princípios que fundamentam a sociedade.

Estendendo esse argumento para as cidades, pode-se dizer que o acesso ao solo urbano e a habitação são essencial para a reprodução social. Por isso, a distribuição e o uso do solo urbano e da moradia não deveriam ocorrer sob a lógica do livre mercado, mas estar subordinado aos valores e princípios que garantissem a coesão e a justiça social. Sem isso, a própria sociedade está ameaçada.

Antes de atender a interesses econômicos e estar submetido à lógica do mercado e do lucro, a cidade é um direito coletivo, o que significa que precisa estar a serviço de toda coletividade, garantindo a proteção social e a qualidade de vida de todos e de todas. É por isso que o Fórum Nacional de Reforma Urbana defende o princípio da função social da propriedade.

A defesa do princípio da função social da propriedade, no entanto, não é resultado de uma concepção ingênua ou substantivada desse conceito. No capitalismo, o direito de propriedade, para existir e ser exercido, depende, contraditoriamente, da regulação pública e da forma não propriedade (imagine uma cidade sem espaços públicos de circulação). Em outras palavras, a própria propriedade subordinada a forma mercadoria depende, contraditoriamente, da forma não mercadoria, o que se expressa na adoção de alguma modalidade de função social da propriedade ou de utilidade pública nas normativas legais relativas à propriedade. Com efeito, as contradições decorrentes das tentativas de universalizar a forma mercadoria torna necessário organizações que ultrapassam a lógica da forma mercadoria por meio de politicas de bem estar e a desmercantilização de certos bens e serviços. Assim, bem estar social, interesse social, interesse público, função social são sempre termos em disputa.

Tudo isso se reflete no conflito entre mercantilização e desmercantilização da propriedade. A função social é uma concepção em disputa, é sempre relacional envolvendo o que se entende por comum, bem comum, interesse comum, de um lado, e de propriedade e mercadoria, de outro. Do ponto de vista dos que defendem a superação da forma mercadoria e do modo de produção capitalista, o exercício pleno da função social implicaria no fim da propriedade, ou pelo menos da propriedade na forma mercadoria capitalista. Do ponto de vista dos que defendem a ordem liberal pura, o exercício das liberdades individuais de uso da propriedade implicaria no fim da sua função social como mecanismo de acesso à cidade.

Assim, para discutir nossa concepção de função social da propriedade é necessário partir do ideário do direito à cidade.

O direito à cidade pode ser compreendido como um direito coletivo de todas as pessoas ao usufruto equitativo da cidade dentro dos princípios da justiça social e territorial, da sustentabilidade ambiental e da democracia. Ou seja, o direito à cidade envolve o direito à moradia, ao acesso à terra urbanizada, ao saneamento ambiental, a mobilidade urbana, ao trabalho, a cultura, ao lazer, a educação, a saúde e a todos os bens e serviços necessários a reprodução social com dignidade e qualidade.

O direito à cidade também envolve o direito de recriar a cidade, o direito de ter uma cidade radicalmente democrática, onde todos e todas possam participar das decisões relativas a forma como a cidade deve funcionar e ao modo de organizar a vida coletiva.

Nessa perspectiva, o FNRU defende que a função social da propriedade urbana implica na subordinação dos direitos individuais de uso da propriedade aos interesses e direitos coletivos, de forma a garantir o uso socialmente justo e ambientalmente equilibrado do espaço urbano. A oposição entre propriedade privada e propriedade estatal deve ser progressivamente substituída por regimes de direito comum, em especial no que se refere a terra e ao solo urbano, mas também envolvendo o conhecimento humano, que podem ser considerados bens comuns fundamentais à vida. Nesta perspectiva, devem ser adotadas formas de criação, gestão e proteção desses bens baseadas em assembleias e associações populares, em processos participativos e democráticos.

O FNRU defende também a adoção de políticas públicas que efetivem a função social da propriedade, tal como previsto na Constituição Brasileira, sobretudo através da regulação do solo urbano, na perspectiva da promoção do bem comum e da justiça social, em contraponto à lógica mercantilista que impera na produção do espaço urbano, através da implementação dos instrumentos previstos no Estatuto das Cidades, que devem ser aplicados dentro dos princípios constitucionais. A nosso ver, entre estas políticas, destacam-se:

(i) a adoção, pelo poder público, de medidas de desmercantilização da moradia e do solo urbano, incluindo a limitação no número de terrenos urbanos e unidades habitacionais, evitando concentração fundiária, utilizando-se de políticas que promovam uma justa distribuição dos benefícios do processo de urbanização, de forma a garantir uma cidade mais equitativa, mais democrática, plural e equilibrada ambientalmente, com acesso de todos e de todas à terra e à moradia digna.

(ii) a limitação do tamanho máximo dos lotes / glebas no tecido urbano e induzindo a sua utilização através de regras que promovam a redução e o controle das mais valias urbanas, e novos mecanismos publicos de financiamento de programas e projetos que qualifiquem a cidade e garantam o direito à cidade e à moradia das populações mais vulneráveis;

(iii) o reconhecimento, pelo poder público, da propriedade e da posse coletiva por meio de associações e cooperativas populares, as quais precisam ser potencializadas e instrumentalizadas com assessorias técnicas capazes de auxilia-las na execução das suas ações para a defesa da sua moradia e dos territórios nos quais exercem os seus direitos sociais;

(iv) a mudança do procedimento legal das reintegrações de posse e das ações possessórias no caso de litígios coletivos pela posse dos imóveis urbanos e rurais, de forma a proteger os direitos humanos e coletivos de milhares de famílias ameaçadas de despejo por medidas liminares em todo Brasil;

(v) a adoção, pelo poder público, de mecanismos, procedimentos e políticas que promovam a gestão e proteção da terra urbana como bem comum, por meio de processos participativos e democráticos da política e dos projetos urbanos, envolvendo assembléias locais, conselhos e conferências das cidades, de forma a garantir a progressiva institucionalização da gestão democrática das cidades;

Acreditamos que estes princípios e diretrizes são de fundamental importância para subordinar a lógica do mercado imobiliário aos valores e princípios vinculados ao ideário de cidades mais justas, sustentáveis e democráticas e podem iluminar ideias mais criativas para as políticas urbanas federais do próximo governo eleito em 2018.



Ações: Direito à Cidade
Eixos: Política e cultura dos direitos humanos