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Como fica o direito à consulta prévia no contexto da pandemia?


 

 

Por Camila Ceci Martins e Vercilene Dias 

1- Consulta Prévia e Covid-19

O direito à consulta prévia, livre e informada está presente na Convenção 169 da Organização Internacional do Trabalho (OIT), ratificada no Brasil via Decreto 5.051/2004, expresso em seus artigos 6ª e 7º. É um direito de recente reconhecimento e ainda não é plenamente aplicado no ordenamento jurídico brasileiro, sendo disputado sua efetivação, respeitado a metodologia de aplicação indicada pelos povos destinatários e o princípio da boa-fé.

No atual contexto de pandemia, o direito à consulta prévia, livre e informada continua a ser violado pelos grandes interesses econômicos que têm sobreposto o isolamento social e agravado a crise sanitária no país. Empreendimentos do agronegócio e da mineração não paralisaram suas atividades dentro das terras tradicionalmente ocupadas por povos indígenas, quilombolas e tradicionais, agravando a contaminação em crescimento.

A pandemia da Covid-19 se agrava de maneira alarmante no Brasil, já são mais de um milhão de casos registrados e mais de 50 mil óbitos, desde o início da pandemia. A taxa de letalidade do novo Coronavírus no país é de 4,9 %[1]. O Brasil agora é o segundo país em número de casos, atrás apenas dos Estados Unidos.

 

2- Situação dos povos quilombolas, tradicionais e indígenas no contexto da pandemia

Os povos indígenas, quilombolas e tradicionais são destinatários da Convenção 169 da OIT que determina que seja realizada consulta de caráter prévio, livre e informado para quaisquer intervenções nos territórios e modos de vida desses segmentos. No Brasil, esse direito segue em implementação na hermenêutica e práxis jurídica, contudo, sofrendo de tentativas de deslegitimação ou redução de sua amplitude, equiparando-se a consulta prévia a mera reunião, audiência pública ou consulta pública, de forma acelerada e guiada pelo interventor, não pela comunidade/povo afetada.

A consulta deve ser prévia, livre, informada, conduzida pelos destinatários da convenção 169 com autonomia, devendo a participação do Estado e agentes privados estar imbuída de boa fé e respeito à metodologia e tempo das comunidades afetadas. Contudo, o direito à consulta prévia permanece sistematicamente violado, se acirrando no atual contexto pandêmico. Os povos têm denunciado em suas redes e plataformas digitais o aumento progressivo de casos de COVID-19 em seus territórios, de forma alarmante, agravado pela continuidade de atividades econômicas por empreendimentos e mesmo invasão dos territórios.

A Coordenação Nacional de Articulação das Comunidades Quilombolas- (CONAQ), que monitora a evolução da Covid-19 nos quilombos do Brasil de forma autônoma, com o apoio das organizações quilombolas estaduais, registrou em seu último boletim epidemiológico em 16 de junho de 2020, 721 caso confirmados entre quilombolas, 77 óbitos, 2 óbitos suspeitos sem confirmação, com 190.

Da mesma forma, a Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (APIB) denuncia o alastramento da doença nos territórios indígenas, inclusive agravadas pela continuidade das atividades de empreendimentos do agronegócio e mineração, já contabilizando 211 óbitos, apontando para uma taxa de 15% de letalidade. O advogado indígena da APIB, Luís Henrique Eloy do povo Terena afirma: “ Temos 305 povos indígenas falando mais de 274 línguas e 114 povos em isolamento voluntário. Uma grande pluralidade étnica”. Esses povos estão ameaçados pelo avanço da pandemia em suas terras. [1]

Em Minas Gerais, um dos estados mais minerados do Brasil, os trabalhos não paralisaram e todas as atividades minerárias foram declaradas essenciais, via Decreto do governo Federal, inclusive as desnecessárias para insumos hospitalares e serviços de fato imprescindíveis. Comunidades apanhadoras de flores também denunciam a continuidade do plantio e manutenção da monocultura de eucalipto, pulverização de agrotóxicos e circulação de funcionários dentro dos territórios, bem como continuidade de todo tipo de atividade minerária.

A implantação de linha de transmissão segue suas atividades no norte de Minas, atingindo comunidades geraizeiras, autorizada por liminar que permite a retomada das obras, empreendimento este que não realizou a consulta prévia e liberado em plena pandemia. “Com a liminar, cerca de quarenta trabalhadores terceirizados — oriundos de diversas cidades do entorno e de outros estados — chegaram ao Vale das Cancelas, sem passar pela quarentena mínima de sete dias.”[2].

3- Violação do direito à consulta prévia: avanço dos empreendimentos nos territórios


Não há um plano de contingência diante da pandemia direcionado aos territórios tradicionais, quilombolas e indígenas. Em paralelo, o governo federal faz reunião com ministros de Estado e mencionam forma de “aproveitar a pandemia para passar a boiada”, ou seja, para flexibilizar legislação ambiental e agrária ter livre acesso à exploração dos biomas, recursos e territórios tradicionalmente ocupados, repudiando os modos de vida dos povos tradicionais e ferindo o direito à vida, à saúde e à integridade.

A postura do Estado tem sido de relativizar a consulta prévia, sendo agravada por um governo de perfis antidemocráticos, como no caso da determinação da realocação das 800 famílias quilombolas no Maranhãopara consolidação do Centro Espacial de Alcântara, com base na Resolução nº 11/2020 que, além disso, previa a construção de Plano de Consulta às comunidades, contudo, sem publicizar as diretrizes para tanto e desconsiderando o protocolos autônomos de consulta prévia que deveriam orientar o processo. É um caso de conjunto de violações de direitos fundamentais, como direito à saúde, à vida, à consulta e à dignidade humana. [3]

Há relativização do direito à vida pelos governos e a iniciativa privada devido a continuidade das atividades de empreendimentos de infraestrutura, mineração, agronegócio, inclusive dentro de territórios tradicionais, agravando a contaminação pelo SAR-COV-2. Argumenta-se que “O Brasil não pode parar”, que a economia não pode estacionar, ferindo orientações da Organização Mundial de Saúde (OMS) que já atestou o isolamento social como meio mais eficaz para contenção da pandemia. Há violação das orientações internacionais no campo da saúde e da consulta prévia pela continuidade ou liberação de atividades não essenciais nesse contexto.

No Maranhão, por exemplo, segue o processo de duplicação da Rodovia BR 135 pelo DNIT, violando direito de consulta aos povos quilombolas afetados. Tal evidência se comprova na firmação de acordo entre DNIT, MPF, DPU e FCP, homologado pela 8ª Vara Federal Ambiental e Agrária da SJM do Maranhão, autorizando o início das obras nos primeiros 18 quilômetros entre os municípios de Bacabeira e Santa Rita, em meio a pandemia, sem consultar as famílias.

Contudo, o Judiciário produz decisões que não dão protagonismo aos povos afetados de modo geral. “Sugere-se consulta virtual aos atingidos, mostrando uma leitura do judiciário afastada da realidade. A gente vê decisões judiciais que não dão protagonismo aos atingidos por empreendimentos em seus territórios”, aponta Manoela Roland, coordenadora do HOMA – Centro de Direitos Humanos e Empresas. Com menos fiscalização estatal e vigilância da sociedade civil devido ao cenário. Há acúmulo de violações de direitos territoriais e fundamentais com grande chance de impunidade

Roland acrescenta ainda: " Percebemos nos estudos que fazemos, que esses empreendimentos, mesmo com a consulta aos povos, não são positivos e compatíveis com as práticas tradicionais que esses povos têm com os seus territórios". As promessas de desenvolvimento e empregos não se cumprem ou não são suficientes para compensar as perdas socioambientais da intervenção, descaracterizando o meio ambiente, o livre acesso aos povos dentro do próprio território ou mesmo a expropriação e criminalização dos atingidos. "Hoje temos uma criminalização dos povos tradicionais que passam a ser obstáculos no processo de afirmação de um projeto de nação. As falas da reunião ministerial demonstram isso" finaliza Roland..[4]

4- Formas de enfrentamento


Entre as formas de enfrentamento ao cenário sistemático de violações, há a construção de protocolos autônomos e comunitários de Consulta Prévia. Esses instrumentos traduzem as regras dos povos para condução do procedimento de Consulta e são um exercício de autonomia e protagonismo popular. Segundo Tatinha Alves, da Comissão em Defesa dos Direitos das Comunidades Extrativistas – Codecex: “As comunidades estão aprendendo sobre o exercício desse direito de consulta prévia, livre e informada que historicamente foi violado. Nós construímos dois protocolos de consulta das comunidades dessa região e foi uma ferramenta que fortaleceu muito os/as apanhadores/as de flores.”. [5]
As comunidades estão em processo de empoderamento do instrumento e o apresentam diante de qualquer intervenção no território. “Ainda tem muita ameaça nas comunidades, mas hoje elas têm mais segurança para dizer que devem ser consultados porque eles têm um protocolo. É uma lei criada pela comunidade", relata Codecex.

O trabalho de assessoria jurídica popular também fortalece processos de construção de protocolos comunitários, além de litigar estrategicamente nos conflitos socioambientais. A Terra de Direitos possui experiências de construção de protocolos na região do Tapajós no estado do Pará com comunidades tradicionais e quilombolas e na Serra do Espinhaço, em Minas Gerais, com as apanhadoras de flores, além do trabalho de assessoria em litígios que envolvem direito à consulta prévia, com êxitos no reconhecimento da violação desse direito e desafios para sua efetivação adiante.

O movimento indígena aponta a incidência no Sistema de Justiça como ferramenta para dar respostas rápidas a toda forma de violação contra os povos, estratégia que apresenta limites mas cria precedentes importantes nesse âmbito. Apontam ainda a incidência legislativa como importante, principalmente na atual conjuntura política, através dos mandatos de indígenas no congresso nacional[6].

A partir da luta dos povos, foi protocolado o PL de nº 1142, que cria o plano emergencial para povos indígenas e estabelece medidas emergenciais para quilombolas e comunidades tradicionais, especificamente direcionadas às questões de saúde, aprovado no Senado Federal em 16 de junho de 2020, aguardando sanção presidencial. 

Os povos apontam ainda a união das lutas pela proteção de sua identidade, reconhecimento e efetivação de direitos e manutenção dos territórios. É um processo em movimento e desafios, mas que rende frutos preciosos para o cotidiano das comunidades, animando a caminhada nas lutas por efetivação de direitos humanos.


[1] Aspas retiradas de fala em live promovida pela Terra de Direitos intitulada: Como fica o direito à consulta livre, prévia e informada em tempos de pandemia? Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=kzyMyLqMaGE 01 de junho de 2020.

[2] Disponível em:https://deolhonosruralistas.com.br/2020/06/09/empresa-do-grupo-brookfield-coloca-geraizeiros-em-risco-de-contagio-por-covid-19/

[3] Disponível em: http://conaq.org.br/noticias/nota-de-repudio-a-resolucao-do-governo-que-ataca-quilombolas-de-alcantara/

[4] Aspas retiradas de fala em live promovida pela Terra de Direitos intitulada: Como fica o direito à consulta livre, prévia e informada em tempos de pandemia? Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=kzyMyLqMaGE. 01 de junho de 2020
[5] Aspas retiradas de fala em live promovida pela Terra de Direitos intitulada: Como fica o direito à consulta livre, prévia e informada em tempos de pandemia? Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=kzyMyLqMaGE 01 de junho de 2020.

[6] Referência da APIB - Articulação dos Povos Indígenas do Brasil.



Ações: Empresas e Violações dos Direitos Humanos
Eixos: Terra, território e justiça espacial