Decreto quilombola é constitucional sem aplicação do marco temporal, afirma STF
Fernando Prioste
Após quase 14 anos de tramitação, o Supremo Tribunal Federal (STF), por maioria dos votos, julgou improcedente a Ação Direta de Inconstitucionalidade nº 3239, que atacava o Decreto Federal nº 4887/03 de regulamentação do procedimento de titulação das terras quilombolas.
O resultado do julgamento surpreendeu as mais otimistas expectativas. Isso porque, com a transparência e firmeza dos votos, os Ministros e Ministras que julgaram o decreto constitucional afastaram qualquer dúvida sobre a aplicação do marco temporal.
O Supremo Tribunal Federal foi além da declaração de constitucionalidade, e mesmo do reconhecimento do acesso à terra para quilombolas como direito humano, como instrumento essencial para o combate ao racismo. Os Ministros Edson Fachin, Luis Roberto Barroso, Luiz Fux, Ricardo Lewandowski, Marco Aurélio e Celso de Mello, bem como as Ministras Rosa Weber e Carmem Lúcia, rechaçaram, de forma inequívoca e definitiva, a aplicação do marco temporal às comunidades quilombolas. Apenas os Ministros Dias Toffoli e Gilmar Mendes votaram pela aplicação dessa tese, que estabelece que que só teriam direito às terras as comunidades que tinham sua posse em 5 de outubro de 1988.
O Ministro Ricardo Lewandowski afirmou que a proposta de marco temporal apresentada pelo Ministro Dias Toffoli impunha às comunidades quilombolas a obrigação de produzir uma "prova diabólica", impossível de ser obtida na prática. Obrigar as comunidades a provar que foram expulsas da terra de forma violenta seria, na verdade, impedir o exercício do direito e desconsiderar a notória opressão histórica a que as comunidades quilombolas estão submetidas.
Lewandowski ainda afirmou que a ciência antropológica tem ampla capacidade de estudo da relação das comunidades que pleiteiam o direito à titulação com a terra pretendida, e que fraudes seriam impossível, pois não seria minimamente factível admitir a possibilidade de criação de "comunidades imaginárias" para impor a aplicação do marco temporal como elemento apto a evitar supostas fraudes.
A Ministra Rosa Weber, em voto apresentado no ano de 2015, precisamente no parágrafo nº 4.4.4, fazia alusão à possibilidade de aplicação do marco temporal, embora seu voto, desde aquela oportunidade, na parte dispositiva, não fizesse qualquer remissão à imposição do marco temporal. Diferente do voto apresentado pelo Ministro Dias Toffoli, que julgava procedente a ação para impor uma interpretação conforme ao art. 2º, §2º do Decreto Federal 4887/03, a Ministra Rosa Weber, no dispositivo de seu voto, reconhecia desde 2015 a improcedência total da ação.
Durante a sessão de julgamento a Ministra Rosa Weber, quando questionada por seus pares, afirmou que o texto contido no parágrafo 4.4.4 teria caráter obiter dictum, ou seja, o citado parágrafo é dispensável, e estava no corpo do voto por força retórica, não implicando em qualquer vinculação para o resultado do julgamento, tendo sito utilizado apenas para completar o raciocínio. Diante da aparente dúvida dos pares, inclusive em função das manifestações dos Ministros Edson Fachin e Roberto Barroso quanto a este ponto do voto da Ministra, Rosa Weber afirmou explicitamente aos colegas de tribunal que retiraria de seu voto o citado parágrafo, para que não haja qualquer dúvida quanto à não aplicação do marco temporal às comunidades quilombolas.
Por sua vez, o Min. Roberto Barroso também rejeitou qualquer possibilidade de aplicação do marco temporal. Ao final de seu voto o Ministro apresentou teses que reforçariam a impossibilidade de aplicação do marco temporal. Segundo o Ministro, as comunidades que estavam ocupando suas terras em 1988 têm direito à titulação, assim como também têm direito, com a mesma extensão, todas as comunidades que, por qualquer motivo, não ocupavam suas terras em 1988, mas que continuam a existir atualmente como quilombolas.
Diante do descontentamento do Ministro Dias Toffoli quanto ao resultado do julgamento, e uma vez que referido Ministro afirmou que estaria sendo mal compreendido quanto à aplicação do marco temporal, o Ministro Luis Roberto Barroso leu, em plenário, o texto art. 2º, §2º do decreto e afirmou, sem deixar qualquer margem para dúvida, que o texto do decreto é constitucional, sendo inconstitucional a intenção de aplicação do marco temporal.
Ao final do julgamento, quando já computados os votos, e no momento em que se debatia os termos do acórdão, que ficará a cargo da Ministra Rosa Weber, o Ministro Ricardo Lewandowski afirmou que as teses apresentadas pelo Ministro Roberto Barroso seriam dispensáveis, e que bastaria afirmar a improcedência da ação, bem como a constitucionalidade do decreto. A importação das teses do Min. Barroso para o acórdão, segundo o Min. Lewandowski, poderia levar a interpretações equivocadas "na ponta", ou seja, no momento de aplicação prática do decreto.
Assim, o Supremo Tribunal Federal deixou absolutamente explícito, por ampla maioria, que não há qualquer possibilidade jurídica de aplicação da tese do marco temporal às comunidades quilombolas. As investidas ruralistas pela aplicação do marco temporal foram flagrantemente derrotadas, e daqui em diante a ação do Poder Executivo, principalmente do Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra) e dos demais órgão de governo, deverão estar obrigatoriamente vinculadas à decisão do STF. Qualquer possibilidade de aplicação do marco temporal em casos concretos poderá ser contestada diretamente no Supremo Tribunal Federal através de reclamação constitucional.
O resultado do julgamento, em um momento político de amplos retrocessos em direitos humanos, dá um grande impulso para as lutas quilombolas, mas também nas lutas por direitos humanos em geral.
O ministro Celso de Mello chegou a afirmar que o Supremo Tribunal Federal deve reavaliar decisão tomada no passado, que considerou os tratados e convenções internacionais de direitos humanos com caráter de supra legalidade, estando em posição hierárquica inferior à Constituição. O membro mais antigo da Corte afirmou que tem posição firme no sentido de reconhecer tratados e convenções internacionais de direitos humanos com norma de natureza constitucional, e fez neste ponto expressa remissão à Convenção 169 da Organização Internacional do Trabalho (OIT). Essa posição adotada pelo Ministro Celso de Mello fortalece os direitos humanos no atual contexto de frontal ataque a conquistas históricas obtidas após anos de ditadura civil-militar no Brasil, e coloca ao STF a tarefa de rever o etendimento quanto à recepção de tais normas interacionais.
Todo esse contexto fortalece sobremaneira a luta quilombola pela titulação das mais de 6 mil comunidades existentes no Brasil. Não há qualquer margem de dúvida para questionar a validade integral do Decreto Federal nº 4887/03, ou para aplicação do marco temporal. Além disso, a posição adotada pelo STF permite afirmar que inconstitucional é a demora do Poder Executivo, através do Incra, para titular os territórios quilombolas, em flagrante violação do direito constitucional à duração razoável do processo.
A seguir o atual ritmo de titulações, o Incra tardaria mais de seiscentos anos para titular todos os quilombos, prazo que pode se alargar em função da brusca diminuição de recursos para as titulações. As verbas chegaram a R$ 50 milhões por ano durante o governo Lula, sendo que, para o ano de 2018, a verba talvez não atinja o patamar de R$ 1 milhão.
Não há dúvidas que os movimentos quilombolas, a exemplo da Coordenação Nacional das Comunidades Quilombolas (CONAQ), bem como organizações de assessoria parceiras do movimento, como a Terra de Direitos, cobrarão nos campos políticos e jurídicos a titulação imediata de todas as comunidades.
O arco-íris que se formou no Planalto Central ao final do julgamento de ontem, logo acima do prédio do STF, ressuscitou com vigor a luta de Dandara e Ganga Zumba, sepultados para a história, ao lado de Domingos Jorge Velho, que destruiu o quilombo dos Palmares no século XVI, aqueles escravocratas do nosso tempo que buscavam a todo custo atacar os quilombolas do século XXI. A vitória foi plena, mas ainda há muito que fazer, pois o reconhecimento formal do direito não é a sua realização material.
O arco-íris que se formou no Planalto Central ao final do julgamento de ontem, logo acima do prédio do STF, ressuscitou com vigor a luta de Dandara e Ganga Zumba. Agora, ficam sepultados para a história, ao lado de Domingos Jorge Velho – que destruiu o quilombo dos Palmares no século XVII – os escravocratas do nosso tempo, que buscam a todo custo atacar os quilombolas do século XXI. A vitória foi plena, mas ainda há muito que fazer, pois o reconhecimento formal do direito não é a sua realização material.
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Ações: Quilombolas
Eixos: Terra, território e justiça espacial
Tags: Marco Temporal,ADI 3239,Quilombolas,Fernando Prioste,Territórios quilombolas