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Marco temporal e o direito à autoidentificação dos povos indígenas

25/08/2021 Auricélia dos Anjos

“Não fomos derrotados, ainda resistimos e testemunhamos que somos os primeiros habitantes do Brasil, viveremos mais 500 e 500 anos com todas nossos costumes e tradições, sempre acompanhando a evolução do tempo sem perder nossa verdadeira identidade”

(Gildo Terena)

Indígenas do Baixo Tapajós, em protesto contra políticas anti-indígenas, em junho de 2021/ Fotos: Priscila Tapajowara e Alexandre Arlisson/CITA

Os povos indígenas vêm sofrendo tentativa de genocídio e de extermínio, seja ela no ataque direto a seus direitos, ou tentando silenciá-los, negando suas raízes, suas identidades em um processo de branqueamento e de retirada de direitos. Há uma luta e resistência muito grande para que esses povos continuem existindo –  uma luta que não é apenas dos povos indígenas, mas também daqueles que reconhecem o quanto importante são.

Diante de um histórico de sofrimento, dor, de resistência, de luta e de silenciamento, podemos contar parte de nossa história com nossa versão. O marco temporal é apenas mais uma tentativa de nos silenciar, de nos enganar, de nos negar, de tentar nos exterminar, de nos intimidar e de violar ainda mais nossos direitos conquistados ao longo desses 521 anos de resistência.

Passamos por um processo de “retomada” de reivindicações e de reafirmação de nossa história, da nossa identidade e de nossos territórios: somos os chamados povos em Resistência Étnica. Diante de toda tentativa de nos exterminarem, estamos aqui contando nossa história, aquilo que ainda não foi contado para que possamos mostrar para a sociedade preconceituosa e racista o quanto fomos violados e como re-existimos a todo tipo de sofrimento, de perseguição e tentativa de extermínio.

Os povos indígenas, em reafirmação étnica, vêm crescendo. A consciência de ser indígena e do pertencimento aos povos que vivem e que estavam aqui há séculos vem se tornando cada vez mais forte em um movimento nacional que surge a partir dos anos 1980. Nesse movimento incluem-se os 13 povos indígenas do Baixo Tapajós, que sofrem vários ataques na tentativa de continuarem negando a existência e a identidade desses povos.

Na região, houve várias guerras contra os colonizadores, indígenas foram assassinados, escravizados, mulheres estupradas etc. Foram nos silenciando e negando nossas verdadeiras identidades. Os colonizadores usavam suas armas, nos fizeram falar suas línguas e esquecer as nossas. Esse processo de falar a língua materna hoje foi resultado de resistência frente aqueles que se achavam nossos donos. Não podíamos falar em nossas línguas, realizar nossos rituais, cultivar nossas tradições por que éramos mortos.  Fizeram-nos acreditar em um Deus que não era nosso. Colocaram em cada lugar, em cada aldeia construções de suas igrejas, falavam em nome de um Deus que nos era estranho. Tomavam nossas vestes e faziam vestirmos as deles, nos trouxeram doença e implantaram suas culturas. Fomos aos poucos sendo incorporado nos seus mundos. Faziam de tudo, de qualquer forma, para que negássemos nossa identidade e entregássemos nossos territórios e nossas riquezas. Não muito diferente de hoje, que usam outras formas para negar nossos direitos.

O marco temporal é uma armadilha muito poderosa a favor deles para que continuam negando nossa identidade e nossos direitos. Os povos indígenas em processo de resistência étnica são que mais serão prejudicados caso passe a tese do marco temporal. Essas são as novas formas que usam para atingir nossos direitos e roubar nossas terras, através de projetos de leis, de PECs, entre tantos outros ataques.

A solicitação de demarcação de terras indígenas no Baixo Tapajós foi iniciada somente a partir de 2000. Pelo marco temporal, nenhuma das 18 terras do Baixo Tapajós seria demarcada – roubariam nossos povos como fizeram anos atrás. Por isso a importância de mobilizar o povo para lutar contra todos esses projetos de morte.

A identidade está diretamente envolvida com o território, com aquilo que nos faz ser o que somos, no que amamos e no que prezamos pelas gerações presentes e futuras gerações. O território é mais que um espaço de terra, de floresta ou de água que os seres humanos vivem. A identidade está ligada a seres não humanos que são parte de nós e principalmente ligada ao mundo dos encantados que nos protegem e nos guiam. Para nós, é uma forma de viver com reciprocidade: eles cuidam de nós e nós deles. Temos o dever de proteger as vidas de todos os seres com nossas forças e nossa verdadeira identidade indígena, herança dos antepassados que lutaram para que estivéssemos vivos. Queremos estar vivos com nossas histórias e com nossos lugares intactos. O território é a nossa vida, estamos interligados.

A questão identitária dos povos indígenas é uma questão de continuação da humanidade, de proteção da vida e do meio ambiente, da diversidade cultural. Não é uma questão que começou agora, ela sempre existiu. Os direitos conquistados ao longo dos tempos não surgiram apenas com a Constituição de 1988, eles já existiam, porque somos povos originários, porque já estávamos aqui antes da colonização: antes de qualquer coisa que o homem branco escreveu, tínhamos nossas próprias leis. A Constituição reconhece a organização social dos povos indígenas, não há como não dizer que nossos territórios não são nossos, sempre vivemos no nosso lugar. Em vários desses lugares fomos expulsos. Quando fomos recordando a consciência do processo de inúmeras violações, começamos a retomada desses direitos, desses lugares e de retomar a consciência de quem somos.

Acontece que em muitos casos tentaram negar o nosso direito ao território e a nossa identidade. Fomos julgados pela sociedade e até pela Justiça Federal quando em 2014 proferiu uma sentença racista na tentativa de mais uma vez negar a nossa identidade e o nosso território.

Santarém é um território de indígena que foi invadido pelos colonizadores e foi essa invasão que trouxe inúmeros prejuízos aos povos indígenas. Por toda parte da cidade há vestígio da ocupação indígena. Estudos mostram isso e ainda nesses tempos há violações dos direitos dos povos na brusca tentativa de acabar com as terras indígenas e fazer desaparecer os vestígios desses povos que habitavam a região. A exemplo, temos as grandes construções que fizeram em cima dos sítios arqueológicos como a construção dos prédios da Ufopa e do porto da Cargill. A Cargill, aliás, é um símbolo de dessa invasão: ela não está apenas dentro dos territórios com a construção de um porto, mas também com grandes plantações de soja e milho, desrespeitando os donos da terra e envenenando o povo.

Não é que o processo de genocídio terminou, ele continua. Desses inúmeros casos de violações aos direitos dos povos, querem matar nossas culturas e nossas identidade étnicas.

Fomos chamados de caboclos, de ribeirinhos, de mocorongos, entre tantos outros apelidos. Hoje, nos dá enorme orgulho de reconstruir essa história. Vale ressaltar que a identificação é coletiva, que não basta o indivíduo ser indígena, é preciso que o povo o reconheça como parte do grupo, que tenha uma ligação com o território, que faça parte daquela cultura, que é do lugar e quem tem um pertencimento direto com os antepassados. Ser indígena está no sangue e também está na alma.

Queimaram nossos galhos, mas nossas raízes são fortes, são profundas. Renascemos com muito mais forças e nossas sementes continuam sendo plantadas. O marco temporal jamais será capaz de acabar com nossa história, com nossas vidas e com nossos costumes e tradições. Já estamos aqui há mais de7 mil anos, não nascemos em 1988, estamos firmes e continuaremos lutando pelo o que é nosso.

*Auricélia é do povo Arapium, da aldeia São Pedro (Santarém-PA). Graduanda em Direito pela Universidade Federal do Oeste do Pará e Vice Coordenadora do Conselho Indígena Tapajós Arapiuns (CITA)

Este artigo foi originalmente publicado no livro Justiça e o marco temporal de 1988: as teses jurídicas em disputa no STF sobre terras indígenas, que pode ser acessado aqui



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