Consulta prévia virtual? O temor dos quilombos do Maranhão afetados pela BR 135
Enquanto o assédio contra as comunidades continua mesmo em meio à pandemia, justiça tarda em reconhecer o direito de as comunidades participarem de ação para impedir violações de direitos.
Em meio à pandemia de covid-19, as comunidades quilombolas entre as cidades de Bacabeira e Miranda do Norte veem com preocupação a proximidade da conclusão das obras de duplicação de 18km das BR 135, no Maranhão. Essas comunidades – que já se indignam com o fato de o Tribunal de Contas da União (TCU) ter autorizado a obra em meio à pandemia, apesar de todas as violações de direitos – temem agora que os órgãos passem novamente por cima de seus direitos para garantir a regularização do empreendimento e a duplicação dos outros trechos restantes.
As obras de duplicação da rodovia – que deve impactar mais de 100 quilombos – foram iniciadas em 2017, mas foram paralisadas após as comunidades denunciaram irregularidades no projeto, entre elas a falta da Consulta Prévia, Livre e Informada aos quilombolas, como determina a Convenção 169 da Organização Internacional do Trabalho.
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Em 2019, o Ministério Público Federal (MPF) ajuizou uma Ação Civil Pública para garantir a continuidade do projeto, na qual reivindicou uma série de medidas que precisariam ser regularmente adotadas pelo Departamento Nacional de Infraestrutura e Transporte (DNIT) para que houvesse a continuidade das obras, entre elas a apresentação de um estudo de componente quilombola identificando todas as comunidades impactadas.
A duplicação dos 18km da rodovia, entre as cidades de Bacabeira e Santa Rita, foi autorizada pelo TCU em julho do ano passado, após um juiz federal autorizar a retomada das obras. Na decisão, o juiz atendeu o pedido do DNIT – que alegou que era urgente que o recurso fosse executado ainda em 2020 – e considerou que a realização do Estudo do Componente Quilombola (ECQ) e o processo de Consulta Livre, Prévia e Informada não seriam impeditivos para continuidade do empreendimento naquele trecho.
Na decisão, o juiz determinou o prazo de até 180 dias para apresentação do Estudo das comunidades quilombolas localizadas em um raio de até 10 km da BR para o restante das obras – muito menor do que a previsão de estudos em um raio de 40km para medir os impactos de rodovias, como sugere a Portaria Interministerial nº 60/2015. O magistrado também afirmou que os processos de elaboração do estudo e de consulta prévia deveriam observar as regras das autoridades sanitárias.
Agora, as comunidades que integram o Comitê de Defesa dos Direitos dos Povos Quilombolas Santa Rita e Itapecuru-Mirim foram contatadas por e-mail empresa Prosul – Projetos, Supervisão e Planejamento LTDA, para a realização de uma reunião virtual para elaboração do Estudo do Componente Quilombola.
Uma das coordenadoras do Comitê, Antônia Cariongo conta que as comunidades não foram informadas oficialmente pelos órgãos responsáveis, como o Departamento Nacional de Transporte e Infraestrutura (DNIT) e Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra), sobre a contratação de uma empresa responsável pela elaboração do estudo, e estranharam receber o contato direto da empresa, por e-mail.
“É um processo que mais uma vez está sendo violado: não participamos em nenhum momento da contratação de empresas pra fazer esse estudo” conta. E questiona a contratação de uma empresa situada em Florianópolis, em Santa Catarina. “Nós temos no Maranhão várias empresas que prestam esse tipo de serviço. Será que um profissional que está em Santa Catarina, que não conhece nosso modo de vida, saberá como fazer esse processo conosco?”.
Em meio à pandemia
Segundo Antônia, o Comitê de defesa dos quilombos da região também cobra que, para que o Estudo do Componente Quilombola seja realizado, seja feita antes a Consulta Prévia aos quilombolas – que é o passo inicial onde as comunidades são informadas sobre a obra e seus impactos e decidem, entre outras coisas, se a obra pode avançar através dos estudos. “Nesse momento de pandemia nós não vamos abrir nossos quilombos para empresa nenhuma fazer estudo, ainda mais sem termos sido consultados. Sem consulta não tem estudo”, afirma.
O Comitê é categórico em afirmar que os processos de consulta prévia e a elaboração do estudo do componente quilombola da obra não se darão de outra forma que não a presencial, após o fim da pandemia. “Não podemos fazer esse processo virtualmente, precisamos estar dentro das comunidades, junto com as famílias”, ressalta Antônia.
O momento também exige cuidados. O Maranhão apresenta um aumento dos casos de covid nos últimos sete dias, comparado a média de duas semanas atrás. Quase cinco mil mortes foram registradas no estado, desde o início da pandemia. Os quilombolas seguem ser ter ações efetivas de uma política governamental de proteção aos quilombos e sem previsão do início da vacinação. “As comunidades do Maranhão estão a mercê de si próprias na pandemia”, denuncia Antonia. É por isso que qualquer avanço no processo de consulta prévia e do estudo do componente quilombola deva esperar. “Para eles [empresa e órgãos que garantem a obra], a vida das pessoas não interessa. Quem defende a vida das pessoas é o Comitê, é a Conaq [a Coordenação Nacional de Articulação das Comunidades Negras Rurais Quilombolas]”.
À espera da Justiça
Para denunciar as irregularidades envolvendo a obra, 10 associações dos quilombos da região pediram, em maio de 2020, para ingressar na Ação Civil Pública movida pelo MPF. As associações pedem para participar na condição de litisconsortes – que reconhece os sujeitos como diretamente afetados pela ação, ou como demandantes. O pedido está para ser apreciado desde o fim de agosto do ano passado.
No início de fevereiro, as associações enviaram uma petição ao juiz federal, pedindo que o pedido seja apreciado. No documento, as comunidades também informam a necessidade de aumento do prazo para realização dos Protocolos de Consulta Livre, Prévia e Informada, uma vez que os processos estão sendo impactados pela pandemia, e cobram que, enquanto não houver a consulta, a obra de duplicação da BR não seja estendida para além dos 18km iniciados por exceção criada por decisão judicial.
Maíra Moreira, a advogada popular da Terra de Direitos que assessora as comunidades, explica que essa decisão revelará como o Sistema de Justiça percebe as comunidades quilombolas diante dos processos judiciais. Isso porque o juiz pode optar por seguir a proposta do Estado do Maranhão, do DNIT e MPF, que sugeriram que as associações fossem admitidas no processo como amicus curiae, um tipo de participação dada a sujeitos não diretamente afetados pela ação.
“Se o juiz disser que as associações vão entrar como amicus, entenderá que elas não estão diretamente interessadas no processo. Com isso estará praticando uma violação contra essas comunidades”, aponta.
Agora, a expectativa é que haja uma decisão sobre um pedido, que está há mais de seis meses aguardando encaminhamento. “Enquanto isso, o judiciário está se eximindo de dar uma decisão e, ao mesmo tempo, não parece estar observando essas outras movimentações violadoras que estão acontecendo”, finaliza Maira.
Ações: Quilombolas, Empresas e Violações dos Direitos Humanos
Eixos: Terra, território e justiça espacial