Em meio à grave insegurança alimentar no país, organizações denunciam violação do direito à alimentação à ONU
Lizely Borges
Em informe, relator especial do direito à alimentação destaca que governos devem assumir o enfrentamento da fome como ação prioritária neste contexto de pandemia.
O desmonte das políticas de fomento à agricultura familiar, a liberação recorde de agrotóxicos e a ausência de medidas de proteção aos agricultores familiares, às sementes crioulas e à agrobiodiversidade brasileira foram denúncias realizadas ao Conselho de Direitos Humanos da Organização das Nações Unidas (ONU) por organizações sociais brasileiras, nesta terça-feira (02), durante o Diálogo Interativo com o Relator Especial para o Direito à Alimentação, Michael Fakri.
A denúncia serve como complemento ao informe apresentado pelo relator especial do direito à alimentação [documento em inglês], Michael Fakri, para a 46ª Sessão do Conselho de Direitos Humanos da Organização das Nações Unidas (ONU), agenda em curso nestas últimas semanas.
Por meio de vídeo a assessora jurídica da Terra de Direitos, Naiara Bittencourt, alertou que medidas adotadas no último período pelo governo federal têm intensificado um cenário de vulnerabilidade social, especialmente da população empobrecida e de agricultores familiares, no acesso à alimentos de qualidade. “No Brasil, em plena pandemia de coronavírus, caminhamos por um presente e um futuro de fome e envenenamento”, alerta. A incidência internacional contou ainda com apoio do Grupo de Trabalho Biodiversidade da Articulação Nacional de Agroecologia (ANA) e da Rede de Sementes da Agroecologia (ReSA). Veja o vídeo abaixo.
Durante o segundo ano de mandato de Jair Bolsonaro (sem partido) o Ministério da Agricultura, Pecuária e Abastecimento (Mapa) aprovou 493 agrotóxicos, novo recorde anual de aprovação deste produto. Sob atual comando de Teresa Cristina, ruralista ex-presidente da Frente Parlamentar da Agropecuária (FPA), o Ministério da Agricultura, Pecuária e Abastecimento (Mapa) tem usado dos seus expedientes para avanço do registro desses produtos químicos, mesmo em meio à pandemia e orientação de não aprovação de produtos não essenciais.
Na manifestação oral, as organizações brasileiras ainda reforçaram a urgência da adoção de medidas, pelo governo brasileiro, para assegurar os direitos das e dos trabalhadores rurais. Aprovada em 2018 pela Assembleia Geral da ONU e fruto de pressão internacional por movimentos do campo, em especial a Via Campesina, a Declaração sobre os Direitos dos Camponeses e Outras Pessoas que trabalham em Zonas Rurais não recebeu, até o momento, a assinatura do governo brasileiro. O documento norteia um conjunto de compromissos dos países signatários em promover a agricultura familiar e camponesa, atuar orientado na defesa da soberania alimentar e garantir meios para que os agricultores possam proteger, controlar suas próprias sementes, entre outras medidas.
Em resposta à denúncia das organizações sociais, o governo brasileiro teceu rápidos comentários à ONU sobre a ações governamentais para efetivar o direito humano à alimentação para a população brasileira. No entanto, as respostas foram pouco específicas.
Ao comentar sobre a assinatura da Declaração dos Direitos dos Camponeses pelo país, o membro do Ministério das Relações Exteriores, Christiano Figueiroa, relatou que o país tem estudado a assinatura, mas manifesta “preocupações substantivas em relação a vários dispositivos” da normativa. O debate e as negociações em torno da assinatura da Declaração pelo governo brasileiro não apenas não são de domínio público, como também o acompanhamento pelas organizações sociais e movimentos camponeses sobre este debate tem sido obstaculizado. As organizações também apontam que as ressalvas mencionadas pelo governo brasileiro à Declaração, questão apontada pelo representante do poder público, também não foram são conhecidas pela sociedade.
A manifestação das organizações brasileiras ainda inclui a denúncia de ausência de medidas que garantam a coexistência segura de sementes crioulas e transgênicas, com consequência de contaminação das sementes crioulas e tradicionais, e a ação em curso para aprovação de trigo transgênico, entre outros pontos.
Fome e pandemia
A partir de informações obtidas junto aos Estados-membros, agências das Nações Unidas, organizações sociais e pesquisadores, entre outros, o relator alertou para a iminente e prolongada crise mundial da fome. “A pandemia da covid-19 continua a exacerbar e acelerar as mesmas desigualdades que persistiram por décadas e, em alguns casos, séculos”, aponta o relator, com o destaque de que a manifestação da pandemia e dos impactos dela apresenta-se ainda mais intensa em povos e segmentos populacionais vulneráveis, como população negra, povos tradicionais, migrantes e encarcerados. Fakri ainda sublinha como a crise econômica, que tem acompanhando a crise epidemiológica, tem gerado uma sobrecarga de trabalho para trabalhadores informais e mulheres por conta da batalha pela renda mínima e dos cuidados de familiares.
O relator reconhece que alguns países implementaram medidas para assegurar o direito à alimentação neste último período, no entanto, aponta que não houve até o momento ações integradas entre países para garantir o direito à alimentação saudável. “Os Estados-Membros e as organizações internacionais ainda não se reuniram para fazer face à iminente crise da fome. Resta nenhuma ação coordenada internacionalmente em resposta à crise de fome causada pela pandemia”, sublinha.
Orientados pela efetivação dos direitos humanos, o enfrentamento da fome e das consequências da pandemia devem ser prioridades para os países, recomenda o relator. No Brasil, a violação do direito à alimentação - especialmente de populações vulneráveis - tem sido uma denúncia constante por organizações e movimentos sociais.
A retomada do auxílio emergencial no valor de R$250 por quatro meses - ainda em articulação entre governo federal e Congresso - é apontada como medida insuficiente. Em nota a campanha Auxílio Até o Fim da Pandemia apontou que "essa quantia não permite comprar sequer 25% de uma cesta básica, o que, por si, já comprova a inadequação do que está sendo discutido pelo Congresso". O auxílio emergencial, concedido até dezembro de 2020, foi utilizado prioritariamente para a compra de alimentos.
Já a proposta de auxílio emergencial para agricultores familiares aprovada pelo Congresso foi vetada por Bolsonaro em agosto de 2020. Convertida na Lei 14.048/20, a redação validada pelos parlamentares continha a previsão de pagamento de cinco parcelas de R$ 600 para agricultores familiares. Como determina o rito regimental, os vetos presidenciais devem retornar às casas legislativas para serem apreciados e validados ou não pelos parlamentares. No entanto, a matéria consta na mesa do presidente do Senado desde agosto e ainda não há indicativo de inclusão na pauta de trabalho dos parlamentares.
Segundo a Rede Brasileira de Renda Básica, uma das organizações participantes da campanha Auxílio até o fim da pandemia, cerca de 84 milhões de brasileiros enfrentam algum grau de insegurança alimentar, condição em que o acesso regular e a disponibilidade de alimentos são escassos.
Ações: Biodiversidade e Soberania Alimentar
Eixos: Biodiversidade e soberania alimentar