Mercado de Carbono no Pará: denúncias de violações marcam debates sobre o REDD+ na COP 30
Assessoria de comunicação Terra de Direitos
Organizações sociais e lideranças alertam para falta de transparência e desrespeito aos protocolos comunitários, e pedem suspensão do processo
Sede da COP 30, a Conferência Mundial de Clima da ONU que ocorre de 11 a 21 de novembro, o Pará enfrenta duras críticas pela forma que vem implementando seu Sistema Jurisdicional de REDD+ (SJREDD+). Com acordos firmados com vários países pelo Governo do Pará, o sistema prevê a redução de emissões provenientes do desmatamento e da degradação florestal com projetos desenvolvidos dentro dos territórios de povos e comunidades tradicionais do estado.
Apresentado como solução para conter o desmatamento por meio do mercado de carbono, o modelo tem sido denunciado por indígenas, quilombolas, extrativistas, comunidades tradicionais, movimentos e organizações sociais – entre elas a Terra de Direitos –, que apontam violações de direitos e ausência da adequada de consulta prévia, livre e informada, conforme determina a Convenção nº 169 da Organização Internacional do Trabalho, da qual o Brasil é signatário.
A Convenção estabelece que povos indígenas e comunidades tradicionais devem ser consultados antes de qualquer medida capaz de impactar seus territórios. Contudo, segundo documento elaborado pela Terra de Direitos, Conselho Indígena Tapajós e Arapiuns (Cita) e Movimento Interestadual das Quebradeiras de Coco Babaçu (MIQCB), o processo conduzido pelo governo paraense contraria normas internacionais e desrespeita os protocolos comunitários.
Além disso, o sistema jurisdicional tem sido avaliado como falsa solução à crise climática por promover a financeirização das florestas e dos territórios de povos e comunidades tradicionais. Com a implementação do sistema, o ônus de preservação e conservação pode recair sobre os povos que já preservam a floresta, enquanto os verdadeiros poluidores usam o poder financeiro para pagar e continuar poluindo.
“O sistema Jurisdicional REDD+ é mais uma falsa solução para crise climática que vem sendo apresentada pelo governo do Estado sem respeitar os direitos fundamentais dos verdadeiros guardiões do clima: os povos indígenas, quilombolas e comunidades tradicionais”, afirma Suzany Brasil, assessora jurídica da Terra de Direitos.
A falta de transparência e de informações claras sobre o Sistema Jurisdicional são também algumas das questões destacadas. Veja material elaborado pela Terra de Direitos que reúne denúncias sobre o modo como o Estado tem conduzido os processos de consulta no Pará.
Acesse o resumo executivo “Sistema Jurisdicional de REDD+ no Estado do Pará viola direitos de povos e comunidades tradicionais”
Alex Maciel, liderança quilombola do território de Rio Alto Itacuruça, em Abaetetuba (PA), relata que o Governo jamais visitou sua comunidade para dialogar sobre a adesão dos quilombolas ao sistema jurisdicional. Segundo ele, o governo, por meio da Secretaria de Estado de Meio Ambiente e Sustentabilidade (Semas/PA), realizou apenas reuniões pontuais com poucas comunidades e sem informar que o tema era o REDD+.
“O que eles fizeram foi fazer algumas reuniões, não nas comunidades e nem nos municípios. Eles juntaram várias regionais com representantes de poucas comunidades e começaram a fazer reuniões desde 2023, mas sem dizer que era pra falar sobre o REDD+”, afirma.
O quilombola foi um dos participantes da atividade “Territórios em Resistência: o direito à consulta e consentimento contra o mercado climático e as falsas soluções”. Organizada pela Terra de Direitos, Cáritas Brasileira, Observatório de Protocolos, Conselho de Pescadores, entre outras organizações e movimentos sociais, a atividade fez parte da programação da Cúpula dos Povos – agenda paralela e autônoma construída pelos movimentos populares do Brasil e do Mundo durante a COP 30.
“É uma violência, na verdade. Esse processo é uma tentativa de deturpação do que é a Convenção 169. A forma como o governo está fazendo não é consulta, a gente já tem feito várias denúncias por conta dessa violência”, afirmou Auricélia Arapiun, liderança indígena do Baixo Tapajós, no Pará.
Venda de carbono sem ouvir os povos
Em setembro de 2024, o Governo do Pará assinou um contrato de R$ 1 bilhão com a Coalizão LEAF/Emergent para venda de créditos de carbono gerados pelo futuro sistema jurisdicional. O acordo foi firmado meses antes de qualquer processo de consulta às populações diretamente afetadas, violando princípios como boa-fé, participação e o caráter prévio da escuta aos povos.
Segundo Maria Ivete Bastos, sindicalista e agricultora familiar de Santarém (PA), a violação do direito a consulta acontece de maneira sistemática pelo governo.
“Nós, povos tradicionais, nunca somos protagonistas, os processos nunca passam por nós. Sabemos que existe um aparato legal que é a Convenção 169 da OIT, mas isso ainda é feito de maneira deficitária pelo governo”, disse Ivete nesta quarta-feira (19), no Pavilhão Brasil da COP 30, no debate “Sistema Jurisdicionais Subnacionais de REDD+ e o Direito à Consulta Prévia, livre, informada e de Boa-fé”, organizado pelo Grupo Carta de Belém - do qual a Terra de Direitos faz parte.
Somente oito meses depois da assinatura do contrato bilionário, o Executivo estadual apresentou um plano de consulta, recebido com surpresa pelas comunidades. “E aí a gente viu que tinham sido feitas várias reuniões dizendo que tinham informado as comunidades e que as comunidades tinham participado desse processo de construção do plano, mas não foi assim”, relata Alex.
O plano de consulta do estado fixa datas, locais e métodos definidos unilateralmente, com cronograma rígido, encontros padronizados e pouco tempo para discussão. No documento estavam previstos 47 encontros distribuídos entre três segmentos de povos tradicionais (indígenas, quilombolas e extrativistas).
Bruna Balbi, assessora jurídica da Terra de Direitos e integrante do Grupo Carta de Belém, destacou que diante da disputa pelos direitos territoriais, os povos e comunidades tradicionais começaram a sistematizar seus próprios protocolos. .
"Em algum momento, o Estado Brasileiro dizia que não sabia como fazer a consulta. Mas hoje a gente sabe, e o estado também, que o direito a consulta é autoaplicável. Está ali e existe. Então para que o estado não deixasse de cumprir o direito, o que os povos fizeram? Começaram a elaborar seus próprios protocolos de consultas, registrar suas regras e mostrar para o estado como ele quer ser consultado. Assim, a consulta tem de respeitar os modos de vida das comunidades, os tempos e a diversidade dos povos”.
Problemas na lei e na distribuição dos recursos
Em junho, o Governo iniciou as primeiras rodadas de consulta presencial. Nos encontros, comunidades foram surpreendidas com a necessidade de avaliação de documentos complexos e extensos, incluindo o anteprojeto de lei que institui o sistema e as diretrizes para repartição de benefícios financeiros.
Análise feita pela Terra de Direitos, Cita e MIQCB aponta que o texto do anteprojeto possui lacunas que podem viabilizar a continuidade da poluição sob a capa da legalidade. Para as organizações, o anteprojeto “legitima o direito de poluir”, pois não enfrenta as causas do estruturais do desmatamento, como a grilagem de terras, expansão agropecuária e grandes obras de infraestrutura. Além disso, transfere a responsabilidade ambiental para o mercado.
O mesmo ocorre com a repartição de benefícios dos recursos financeiros vindo do REDD+. As organizações destacam que o sistema é frágil e pouco transparente ao não definir quem recebe, quanto e sob quais critérios. O Estado recebe o valor total da venda de crédito de carbono, retém uma porcentagem do valor e o residual distribui entre indígenas, quilombolas, extrativistas e outros atores da agricultura sustentável e propriedades rurais, em completa desproporcionalidade.
Os problemas de governança também estão presentes. As comunidades, por exemplo, não foram nitidamente incluídas nos processos de decisões sobre o planejamento e monitoramento da repartição de benefícios. A estrutura de governança prioriza órgãos governamentais e empresas.
Maria Ivete a reforça a preocupação: “Não sabemos quem ganha com isso, nós só sabemos que para nós é mais prejuízo por todas as falas que nós temos ouvido daqueles povos que já tem essa experiência. Eu como sindicato, como moradora do PAE Lago Grande, não me sinto contemplada com esse debate, muito menos com essa forma de consulta”.
Organizações pedem suspensão imediata
Diante das irregularidades e da violação do direito à consulta prévia, as organizações pedem a imediata suspensão do processo legislativo e os atos administrativos relacionados ao SJREDD+, a anulação das medidas tomadas sem a adequada consulta prévia – como a venda antecipada dos créditos. Reivindicam ainda que o processo seja reiniciado com consultas amplas, efetivas e culturalmente adequadas.
Também pedem que o Ministério do Meio Ambiente e o CONAREDD+ não validem o sistema estadual enquanto persistirem violações, e que a regularização fundiária seja tratada como prioridade absoluta.
“A gente tem falado de consulta culturalmente adequada porque a consulta não pode ser unificada, que é o que o Estado está fazendo. Porque cada comunidade tem a sua cultura, a sua forma de tomar decisão e tem seu modo de vida próprio. Então hoje a gente tem os protocolos que são instrumentos legítimos para que esse processo administrativo especial de consulta e consentimento seja realizado”, reforça Alex.
Sobre o REDD+
Criado pela ONU, o REDD+ nasceu como mecanismo para reduzir emissões por desmatamento. Mas ao longo dos anos se transformou em instrumento de mercado que converte florestas e territórios em créditos negociáveis.
No modelo jurisdicional defendido pelo Pará, o Estado assume controle sobre a venda desses créditos, alegando que isso daria segurança ao mercado e evitaria duplicidade em projetos privados.
As organizações autoras do resumo executivo, no entanto, alertam, que o modelo aprofunda desigualdades históricas.
“Esses projetos invertem a lógica de governança dos territórios, retirando das comunidades o poder de decisão e submetendo-as aos interesses de grandes corporações. Assim, o Estado permite que quem destrói siga se beneficiando, repassando às comunidades a responsabilidade e os riscos de reparar um problema que não criaram — tudo em nome de um mercado que transforma a natureza em negócio”, destaca o documento.

