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Artigo | Justiça caminha a passos lentos rumo aos direitos humanos


10ª Jornada de Agroecologia_foto de Michele TorinelliMOVIMENTOS SOCIAIS

Fonte: Revista Consultor Jurídico, por Marina Basso Lacerda e Antonio Escrivão Filho

Os movimentos sociais conquistaram em novembro uma importante vitória na Câmara dos Deputados: a inserção, no Código de Processo Civil, de um regime especial para os conflitos coletivos pela posse de imóveis urbanos e rurais. Trata-se de demanda histórica de alteração do Código em vigor — promulgado em 1973, durante o período mais repressivo da ditadura — para que a lei se adequasse à nova ordem constitucional.

Em 2007, organizações de direitos humanos solicitaram formalmente ao Ministério da Justiça o envio ao Congresso de proposta de alteração das ações possessórias no Código de Processo Civil. O Poder Executivo não tomou a iniciativa, e da mesma forma projetos de lei anteriores sobre o tema foram arquivados por falta de apoio. Já em 2011, quando a Câmara dos Deputados recebeu do Senado Federal o PL do novo CPC em trâmite, novamente a mobilização social organizada garantiu que o deputado Padre João (PT/MG), junto a outros onze parlamentares ligados à defesa dos movimentos populares, apresentasse emendas para que o projeto respondesse àqueles anseios da democracia brasileira. Parte disso foi efetivamente contemplado no relatório do deputado Paulo Teixeira (PT/SP), aprovado no Plenário, porém ainda passivo de destaques dos deputados e de posteriores alterações pelos senadores.

A questão das ações possessórias está diretamente relacionada ao acesso à Justiça. Como já alertou Mauro Cappelletti[i], suas implicações estão situadas para muito além de uma mera discussão de processo jurídico-formal.

Segundo a Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (PNAD-2012), coordenada pelo IPEA, o déficit habitacional no Brasil é de 5,24 milhões de residências. Estimativa do Movimentos dos Trabalhadores Rurais Sem-Terra aponta 150 mil famílias aguardando assentamento rural, ao passo em que o Censo Agropecuário 2006 demonstrou inalterada a concentração fundiária nos últimos 20 anos: os estabelecimentos com mais de 1.000 hectares ocupam 43% do campo brasileiro, enquanto aqueles com menos de dez hectares ocupam somente 2,7%. Como resultado desta (des)organização fundiária, a Comissão Pastoral da Terra[ii] indica que só em 2012 foram assassinadas 29 pessoas em conflitos agrários no Brasil.

É evidente que ocupações coletivas não ocorrem com a finalidade do esbulho — o próprio Superior Tribunal de Justiça já o reconheceu. Em geral envolvem grupos hipossuficientes, como camponeses e moradores de assentamentos informais de baixa renda urbanos, que necessitam satisfazer necessidades básicas ligadas à dignidade humana, fundamento da nossa República (CRFB, artigo 1º, inciso III). Os despejos decorrentes de decisões judiciais temerárias, baseadas em uma legislação que toma o conflito em perspectiva reduzida, causam sérias consequências sociais.

O fenômeno social dos conflitos fundiários é complexo, envolve ampla gama de direitos humanos fundamentais, como aqueles à alimentação, à saúde, ao trabalho, à moradia, à segurança e à assistência aos desamparados. Todos previstos expressamente em nossa Constituição e em normas internacionais. Não pode ser analisado senão sob a óptica da indivisibilidade de tais direitos.

O Comentário Geral n° 7 do Comitê de Direitos Econômicos, Sociais e Culturais da ONU trata dos despejos forçados. Em seus 22 parágrafos prevê medidas que os estados devem tomar para proteção contra despejos e para máxima segurança da posse aos ocupantes de moradias e terras. Dentre essas providências, a prática de consultas com os indivíduos ou grupos afetados, previamente à ocorrência do despejo, para soluções aos impactos negativos daí decorrentes, as formas de compensação a serem adotadas e garantia do direito ao reassentamento, incluindo alternativas de moradia e/ou a terra de melhor ou igual qualidade, que atendam aos critérios de habitabilidade e acesso aos serviços essenciais básicos.

A nova redação do Código de Processo Civil dá alguns passos em parte dessas questões.

Em primeiro lugar, reconhece explicitamente que existem conflitos coletivos pela posse, que merecem tratamento específico, diferente do atual regime possessório, caricatamente baseado, nas aulas de processo civil, nos conflitos entre Caio e Tício do direito romano.

Prevê a realização de audiência prévia entre as partes. Hoje, se o possuidor comprovar sua posse (no mais das vezes demonstrada simplesmente com título de propriedade) e a turbação ou esbulho e data (CPC, artigo 927 e incisos), deve o juiz conceder liminar sem oitiva do réu. Com o novo regime, nos conflitos coletivos será obrigatória mediação quando: a) a ação de reintegração de posse for ajuizada depois de “ano e dia” da ocupação, ou b) a execução de uma liminar de despejo concedida não for executada dentro de um ano.

De um lado, é lamentável que o novo Código de Processo Civil mantenha conceito tão antiquado quanto o de posse velha ou posse nova — aquela com mais ou menos de “ano e dia”. Essa categoria remete ao Código Civil de 1916, que está completando um século e que foi revogado há mais de dez anos. O Código Civil de 2002 não repetiu a classificação da posse entre velha e nova, exatamente porque as relações contemporâneas revestiram-se de um dinamismo incompatível com prazos tão grandes para a tutela de um direito.

De outro lado, a previsão de audiência obrigatória quando uma situação de fato se perdura por mais de um ano é bastante consequente. A mediação buscará, em primeiro lugar, a possibilidade de solução pacífica do litígio ou, pelo menos, a negociação tendo em vista os impactos dos despejos sobre a população afetada e a comunidade do entorno, como forma de auxiliar no desenho das soluções alternativas. Além disso, trata-se de garantia do contraditório e a ampla defesa – cláusulas pétreas previstas no artigo 5º, inciso LV, da Constituição, no artigo 11 da Declaração Universal dos Direitos Humanos, no artigo XVIII da Declaração Americana dos Direitos e Deveres do Homem e no artigo 8º da Convenção Interamericana de Direitos Humanos, que tem status supralegal.

O dispositivo prevê, conforme as funções já constitucionalmente estabelecidas, a intimação necessária do Ministério Público e da Defensoria Pública, desta quando houver parte hipossuficiente. Note-se que a previsão de chamada do Parquet já existe no CPC atual, na única menção a conflitos coletivos pela posse que o diploma vigente faz.

Trata, ainda, da possibilidade de intimação dos responsáveis pela política agrária ou urbana, conforme o caso. Mais adequado seria que a participação dos órgãos públicos fosse obrigatória. Mesmo assim, a previsão avança para que as ocupações coletivas sejam compreendidas pelo sistema de justiça como objeto de políticas públicas. Alargam-se, com isso, os parâmetros de uma cultura jurídica encerrada no liberalismo individualista, agora permitindo abordar o problema desde sua realidade, e não a partir de uma perspectiva processual abstrata. De fato, a sociedade brasileira necessita e clama por uma Justiça mais próxima e compreensiva da sua realidade.

Infelizmente não foi expressa no novo CPC, como requisito para a proteção da posse, a observância da função social da propriedade, que é consequência direta do previsto na Constituição: cláusula pétrea (artigo 5º, inciso XXIII), princípio da ordem econômica (artigo 170, inciso III), fundamento do direito de propriedade urbana (artigo 182, § 2º) e rural (artigos 184, 185 e 186). Conforme preceitua o jurista Luis Edson Fachin, “função social é mais evidente na posse e muito menos evidente na propriedade, que mesmo sem uso, pode se manter como tal. A função social da propriedade corresponde a limitações fixadas no interesse público e tem por finalidade instituir um conceito dinâmico de propriedade em substituição ao conceito estático, representando uma projeção da reação anti-individualista. [...]O fundamento da função social da posse revela o imprescindível, uma expressão natural da necessidade.”[iii] Ainda que não expressa literalmente no CPC, o juiz poderá considerar o cumprimento da função social como um dos requisitos integrantes da própria prova da posse, e como um elemento a ser considerado na condução da mediação entre as partes e o poder público. Não haveria de ter o direito de posse quem explora trabalho escravo, assassine lideranças indígenas, quilombolas, extrativistas ou camponesas, ou deprede a natureza, por exemplo.

Após anos de negociações de um texto que hoje tem 1.084 artigos ao total, chegou-se a uma proposta típica das composições políticas. A Constituição da República e o Direito Internacional dos Direitos Humanos continuam além do que a nossa legislação regulamenta. Mas é inegável que importantes considerações de direitos fundamentais pautaram aprimoramentos no regime possessório. Já não era sem tempo.

 

 


 


[i] CAPPELLETTI, Mauro, GARTH, Bryan. O acesso à justiça. Trad. Ellen Grace Northfleet. Porto Alegre: Sergio Fabris, 1988.

[ii] COMISSÃO PASTORAL DA TERRA. Conflitos no campo – Brasil 2012. Goiânia: Expressão Popular, 2013.

[iii] FACHIN, L. E. A Função Social da Posse e a Propriedade Contemporânea. Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris Editor, 1988, pp. 19 e 20. No mesmo sentido, o reconhecimento jurisprudencial: “O conceito de posse, a partir do inciso XXIII, do artigo 5o, da Constituição Federal, está intimamente ligado ao da função social da propriedade.” (TARGS, apelação 195124565)

* Por Marina Basso Lacerda é advogada, mestre em direito pela PUC-Rio e associada da Terra de Direitos
* Antonio Escrivão Filho é advogado do Cezar Britto Advogados Associados, mestre em Direito pela Unesp, doutorando pela UnB e associado da Terra de Direitos

 

 



Ações: Democratização da Justiça

Eixos: Democratização da justica e garantia dos direitos humanos