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Comunidade Faxinal do Emboque reafirma direito territorial à Comissão de Conflitos Fundiários do TJ-PR


Localizada em São Mateus do Sul (PR), comunidade tradicional vive ameaças ao modo sustentável e coletivo de organização da vida comunitária. 

Comunidade faxinalense reunida com representantes dos orgãos do sistema de justiça. Foto: Comunicação Terra de Direitos

Integrantes da Comunidade Faxinal do Emboque, localizada em São Mateus do Sul (PR), reafirmaram, na última quarta-feira (08), aos órgãos do sistema de justiça e de fiscalização em visita técnica à comunidade, a necessidade do Estado de proteger o modos de vida comunitário e sustentável da comunidade tradicional.

Faxinal do Emboque é alvo de uma Ação Declaratória Constitutiva movida em 2016 por chacreiros locais que disputam parte da área de 166 hectares declarados e reconhecidos como território faxinalense. No processo, os autores da ação questionam a legalidade das normativas que asseguram proteção à este povo tradicional (veja abaixo), bem como – ao residirem em território faxinalense - pleiteiam o uso autônomo das áreas, como para a instalação de cercas, não submetido ao acordo comunitário de uso das terras coletivas e as regras estabelecidas pela área especial de conservação (Aresur).  Na avaliação da comunidade faxinalenses a instalação das cercas, o uso de agrotóxicos no plantio, entre outras ações adotadas pelos chacreiros, têm comprometido e ameaçado o modo de vida comunitário e a relação sustentável com a natureza.

A ação movida pelos autores teve sentença favorável em 19 de abril de 2018 pelo Juízo da Comarca de São Mateus. No entanto, o Tribunal de Justiça do Paraná anulou esta sentença em 09 de abril de 2019 e determinou, a fim de assegurar o direito de manifestação da comunidade no processo, o retorno da ação para a 1ª instância. É nesse contexto que ocorre a escuta dos órgãos às partes envolvidas no processo.

Reivindicada pela comunidade como meio dos órgãos do Estado e juiz conhecerem os modos de vida tradicional e reconhecerem os fatores que levam ao conflito socioambiental, a visita técnica à comunidade foi composta por um grupo amplo. Participaram da visita à comunidade a Comissão de Conflitos do Tribunal de Justiça do Paraná, 1ª Promotoria do Ministério Público de São Mateus do Sul, Superintendência de Diálogo e Interação Social (Sudis), a Defensoria Pública do Paraná, o Instituto Terra e Água do Paraná (IAT), Núcleo de Promoção e Defesa dos Direitos dos Povos e Comunidades Tradicionais do Ministério Público do Estado do Paraná e Pontifícia Universidade Católica do Paraná e a Prefeita de São Mateus do Sul, Fernanda Sardanha. O juiz da Comarca de São Mateus do Sul, André Padilha, responsável pelo julgamento da Ação Declaratória, também esteve na visita técnica.

Após diálogo com os chacreiros, a comitiva se reuniu com a comunidade faxinalense onde residem as 57 famílias e percorreu áreas como o criadouro comunitário de animais e plantio de alimentos. “A gente mostrou para o juiz e os órgãos o nosso modo de vida. Mostramos como preservamos a mata, como a gente faz para cuidar e manter os animais, nossa cultura e valores”, relata a faxinalense Sonia Maria Chadai.

“A visita foi super importante porque é uma visita técnica. A gente precisa conhecer o local, o que envolve o processo que está em tramitação, ouvir as pessoas. Agora a gente vai elaborar um relatório, auxiliar posteriormente o juiz da causa e vamos fazer algumas reuniões com as partes”, destaca a Desembargadora Maria Aparecida Blanco de Lima, da Comissão de Conflitos Fundiários do TJ-PR. 

Com o objetivo de atuar na busca de solução consensual para os conflitos possessórios de natureza coletiva, a Comissão de Conflitos Fundiários do TJ-PR deve colocar o relatório à disposição do juiz da 1ª Comarca a fim de subsidiar as tratativas e no eventual julgamento da ação.  

Para o coordenador do Núcleo de Cidadania e Direitos Humanos da Defensoria Pública do Paraná, Antônio Vitor Barbosa de Almeida, a ida ao território e escuta direta aos comunitários também contribui para reposicionar os faxinalenses em lugar de destaque no relato aos órgãos públicos sobre as violações que sofrem enquanto povo tradicional. “É uma prática [visita técnica] que deveria ser implementada mais vezes por órgãos que compõem o sistema de justiça para que a gente saia da frieza técnico processual dos papéis e consiga ter uma compreensão melhor, um pouco mais abrangente do conflito socioambiental. No caso da comunidade faxinalense é muito importante trazer demais órgãos para que consiga demonstrar a deficiência e inefetividade de fiscalização e proteção dessas comunidades tradicionais”, aponta

A assessoria jurídica da comunidade aponta a necessidade de maior atenção do estado do Paraná e dos órgãos públicos na proteção territorial e cultural das comunidades faxinalenses. "Os direitos assegurados na Convenção 169 da Organização Internacional do Trabalho (OIT) para povos indígenas e tribais, na Constituição Federal de 1988, no Decreto nº 6.040/2007, bem como nas normativas estaduais e locais não se efetivam sozinhas. É preciso garantir que o modo de vida comunitário baseado no uso comum e livre das terras e de proteção à natureza seja preservado e prioritário por meio de medidas, previsão orçamentária e participação popular das comunidades, entre outras ações”, destaca a assessora jurídica da Terra de Direitos, Jaqueline Andrade. 

Patrimônio cultural do estado, oParaná conta com cerca de 227 faxinais, de acordo com a Articulação Puxirão. O reconhecimento deste modo de vida pelo poder público e sistema de justiça - como reivindica a comunidade tradicional Faxinal do Emboque - pode, na leitura da comunidade, assessoria jurídica e Defensoria Pública, fortalecer a organização e modos de vida dos demais faxinais no Paraná. 

Comitiva visitou áreas como criadouro comunitário de animais e de plantio. Foto: Terra de Direitos

Autoreconhecimento e direitos
Compreendidos como complexos sistemas agroflorestais (SAFs), os faxinais no sul do Brasil conjugam, há mais de dois séculos, a organização do espaço coletivo em terras destinadas à moradia com a criação solta de animais e terras destinadas ao plantio, especialmente de alimentos para subsistência. Além do uso coletivo da terra, as relações de compadrio e de mutirão também marcam as caraterísticas tradicionais deste povo. 

“A nossa história não começou hoje”, afirmavam de forma incisiva as e os faxinalenses durante a visita técnica. De acordo com a pesquisadora Alcimara Foetsch, em tese de doutoramento, a comunidade Faxinal do Emboque utiliza de maneira sustentável a terra e os bens naturais há mais de 50 anos.

Diferentemente do que os autores sustentam na ação ajuizada em 2016, a comunidade reconheceu sua identidade tradicional muitos anos antes do protocolo da ação. Um dos documentos que expressa a autoindentificação enquanto faxinalenses é o primeiro acordo comunitário do Faxinal do Emboque, de 1988, ou seja, 28 anos antes da ação.

Ainda que o autoreconhecimento não esteja condicionado à chancela estatal, a comunidade foi reconhecida pelo poder público em diversos momentos anteriores à ação de 2016, como com o concedimento da certidão de autoreconhecimento emitida pelo Instituto de Terras, Cartografia e Geociências do Estado do Paraná (ITCG), em 2010 (Portaria nº 28/2010) e leis do município de São Mateus do Sul (Lei 1.780/2008) e do Estado do Paraná (Lei 15.673/2007) que tratam do reconhecimento das comunidades faxinalenses.

Além disso, em 2009, a Comunidade Faxinal de Emboque foi reconhecida pela Secretaria Estadual do Meio Ambiente do Paraná como Área Especial de Uso Regulamentado (Aresur) e inscrita no Cadastro Estadual de Unidades de Conservação. Com isso, a ocupação e o uso do solo em uma Unidade de Conservação, seja por faxinalenses ou por chacreiros, precisam estar alinhadas aos princípios de preservação do meio ambiente.

Distintos modos de uso da terra
“A questão aqui não se trata apenas de pôr ou não cercas [como divisores das áreas entre faxinalenses e chacreiros]. A questão que a gente aborda é maior, é sobre qualidade de vida, sobre segurança alimentar”, destaca o faxinalense Paulo Márcio Wenglarek. Ele relata que o modo de uso da terra pelos chacreiros, com desmatamento e a aplicação de agrotóxicos, em específico o Glifosato (produto de alta toxicidade), entre outras práticas, gera um efeito cascata na contaminação da água, solo e das famílias, na perda da biodiversidade, em caminho oposto ao que os faxinalenses adotam na relação com o meio ambiente.

“A chuva cai e leva o agrotóxico para o manancial, onde a gente capta água para consumo e uso pra gente, para os animais e para o plantio. A gente respira o inseticida usado no nosso lado [área vizinha]. Isso impacta não só a gente, mas a sociedade de modo geral. Vai caber à saúde pública atenuar os impactos dessas ações?”, manifesta.

Para o professor Frederico Marés (PUC-PR), a partir da compreensão de que a comunidade trata-se de um território faxinalense, e não apenas, mas está localizada em Unidade de Conservação, os limites do uso da terra estão determinados pela lei. “O que o Poder Judiciário e Ministério Público viram nesta visita técnica é a disputa real entre o uso predatório de uma terra dentro de uma Unidade de Conservação e o uso voltado para preservação. O que as pessoas podem fazer dentro de uma Unidade de Conservação? Podem usar sua terra, mas não podem derrubar madeira, matar bicho. E em um faxinal é a mesma coisa. É fundamental que o sistema de justiça tenha o entendimento de que os faxinalenses estão protegendo a natureza como deve ser protegida dentro de uma Unidade de Conservação e que os não se dizem faxinalenses não estão protegendo a natureza como deve ser feito dentro da Unidade de Conservação”, enfatiza. 

 



Ações: Conflitos Fundiários

Eixos: Terra, território e justiça espacial