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“No fundo, tudo aquilo que estamos fazendo é a luta pela liberdade”, aponta Pérez Esquivel


Defensor de direitos humanos e Prêmio Nobel da Paz manifesta preocupação com aumento da pobreza no Brasil por força da ação do sistema financeiro no Estado brasileiro.

Foto: José Cruz/ Agência Brasil

 

No parecer do Tribunal de Contas da União (TCU) sobre a aprovação das contas do presidente da República, Michel Temer (MDB), o órgão alertou o Executivo Federal, em junho deste ano, que, com a implementação da Emenda Constitucional 95/2016, caso não sofresse modificações nos próximos anos, a máquina pública terá dificuldades em operar, com risco de paralisação completa em 2024. O anúncio do TCU ocorre em paralelo a um conjunto de levantamentos já consolidados por diversos órgãos sobre os impactos nos direitos humanos pela adoção de uma política econômica de diminuição do recurso público para áreas essenciais à população, como saúde, educaçao e assistência social.

Implementada em 2014 e agravada com a Emenda Constitucional 95, a política econômica austera tem gerado uma violação em massa dos direitos humanos, apontam as organizações sociais. Nesta grave fotografia social estão a inclusão de 1,5 milhão de brasileiros na faixa da extrema pobreza (PNAD Contínua) e o aumento da mortalidade infantil, após 25 anos de queda do índice (Ministério da Saúde). Tema fortemente presente nas eleições, a austeridade viola princípios constitucionais e acordos internacionais ratificados pelo Brasil que determinam a não regressividade nos direitos humanos, como o Pacto Internacional sobre Direitos Econômicos, Sociais e Culturais (PIDESC). “Os governos, ainda que tenham ratificado acordos e tratados internacionais de direitos humanos, não respeitam porque sobrepõem o capital financeiro sobre a vida dos povos, e isto é grave. Há uma violação sistemática dos direitos das pessoas e dos povos”, reflete o defensor argentino de direitos humanos, Adolfo Pérez Esquivel.

Em meio a xícaras de chá para aquecer o corpo em uma noite de frio curitibano, o ativista argentino e Prêmio Nobel da Paz (1980), Adolfo Pérez Esquivel, ainda animado após intensas agendas na capital paranaense, conversou com exclusividade com a Terra de Direitos sobre a vulnerabilidade da população brasileira tocada pela pobreza, sobre a criminalização da política, dos coletivos e sujeitos que se opõem ao projeto nacional em curso.

Esquivel esteve em visita ao Brasil em agosto. Reuniu-se com a presidenta do Supremo Tribunal Federal (STF), Cármen Lúcia, para entrega de abaixo-assinado, com 240 mil assinaturas pela indicação do ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva para o Prêmio Nobel da Paz. Ainda em Brasília, fez uma visita aos grevistas de fome em defesa da liberdade de Lula. Já em Curitiba, visitou o ex-presidente preso desde 07 de abril na Superintendência da Polícia Federal, com condenação por aquisição fraudulenta de um apartamento. A defesa do ex-presidente segue com ações pelos órgãos do Sistema de Justiça e cortes internacionais sob alegação de inconsistência de provas e denuncia de perseguição judicial.

Veja a entrevista completa.

Terra de Direitos - Temos pouco mais de ano de implementação de Emenda Constitucional 95/2016 que estabelece limites para o investimento público em saúde e educação. Isso fez com que tivéssemos a inclusão de 1,5 milhão de pessoas na faixa da extrema pobreza no país. Como o senhor vê, em 2018, uma vulnerabilidade tão grande e acelerada da população que mais necessita da assistência do Estado?
Esquivel: Primeira temos que entender que direitos humanos e democracia são valores indivisíveis. Quando algum direito humano ou a algo da democracia é debilitado eles deixam de ser direitos humanos e democracia. Outra dimensão se refere a como as políticas públicas dos governos implementaram as questões sócias culturais. Direitos humanos são integrais, não são apenas tortura, desaparecimento ou cárcere: incluem saúde, educação, desenvolvimento, respeito às diversidades de identidade das mulheres, indígenas e camponeses e meio ambiente.

"Os governos, ainda que tenham ratificado acordos e tratados internacionais de direitos humanos, não respeitam porque sobrepõem o capital financeiro sobre a vida dos povos, e isto é grave. Há uma violação sistemática dos direitos das pessoas e dos povos"

Esquivel: No Brasil vocês vivem as consequências de um golpe de Estado. A destituição de Dilma Rousseff, com a cumplicidade de legisladores, provocou um golpe de Estado com outras características que já vinha experimentando Honduras e Paraguai. O golpe a Dilma é para retirar Lula do cenário político. A política de Lula foi voltada para combater a extrema pobreza e atingiu a mais de 36 milhões de brasileiros e brasileiras. Isso é um caso único na história dos governos, a superação da extrema pobreza e a dignificação da pessoa humana, que tenha saúde, educação, trabalho e condições de vida. O golpe de estado é um retrocesso enorme porque a política neoliberal não é para todas e todas, não é democrática. É uma politica opressiva porque privilegia grupos de poder e não o povo como um todo. A política neoliberal é excludente. Muitos dizem que é preciso humanizar o capitalismo, mas o capitalismo nunca será humanizado porque nasceu sem coração. É preciso criar outro sistema econômico de políticas sociais, de distribuição das riquezas, da produção e do trabalho. A economia especulativa não é real. É preciso voltar a uma economia solidária.

 

Terra de direitos: Considerando que a política neoliberal não se volta para todos, quais grupos têm sido privilegiados pela adoção de uma política de corte no investimento público para áreas essenciais, como saúde e educação?
Esquivel: As grandes empresas que privilegiam o capital financeiro sobre a vida dos povos são as beneficiadas por estas medidas. Estamos vivendo uma época em que o sistema financeiro é especulativo e não produtivo. Como pode ser a que a Bolsa de Comércio aumente ou abaixem em um dia os valores das moedas, o valor do peso, do dólar? Essa especulação não é real, ela aumenta a pobreza e a marginalidade e a fome e reduz a capacidade da produção real. Estamos muito preocupados com as realidades dos povos porque está crescendo a fome no mundo em um tempo em que o mundo tem a capacidade de superar a fome o não o faz.
 

Terra de direitos: Ainda que índices como desemprego e mortalidade infantil, por exemplo, tenham sofrido significativo aumento, há uma parcela significativa da população - esta que sofre a violação dos direitos humanos - que concorda com o argumento usado pelo governo de que os cortes nos investimentos sociais são necessários para o equilíbrio das contas públicas. Que papel cabe às organizações sociais e movimentos populares para ampliar o debate público na afirmação de um Estado responsável pela execução de políticas públicas como meio para enfrentamento das desigualdades sociais?
Esquivel:
Os meios de comunicação são parte do sistema de dominação. Eles geram a consciência coletiva. Os setores populares recebem uma grande influência dos meios de comunicação, da rádio, da televisão, dos jornalistas. E geram comportamentos coletivos.  Outra via é a educação, muitas vezes ausente de consciência crítica e valores. Agora, como criar uma educação libertadora, com consciência crítica e valores? Vemos que há muitos setores populares não recebem esta formação, recebem tampouco educação. Por isso é fundamental a educação libertadora para reverter esta situação.

 

Terra de Direitos: E quais caminhos devem ser percorridos para a construção de uma consciência crítica coletiva?
Esquivel:
Viemos trabalhando há muitos anos nas universidades, nas escolas, com as crianças, para poder encontrar um caminho alternativo, mas isso também tem a ver com a política dos governos. Temos que perguntar por que Lula vive o que está passando. Não é casual. Quando Lula começa a distribuir as riquezas o capital não gosta, é incomodo. Observe o que acontece com a Argentina, pela intensificação da política neoliberal. Houve concentração da riqueza em poucas mãos, aumento da a exclusão e do desemprego. Já fui professor da Universidade de Buenos Aires, e tenho visto que o pressuposto educativo está fortemente amarrado. Ao capitalismo não interessa a educação de um povo. Isto é um projeto político de um país. Para o sistema econômico não interessa a educação de um povo porque educação gera consciência. Por que a governadora da Província de Buenos Aires, Maria Eugenia Vidal (Proposta Republicana/PRO), questiona para que tantas universidades estão em funcionamento se os pobres não a acessam? Um povo com educação não é facilmente dominado.
 

Terra de Direitos: Vivemos uma violência de um Estado que retira direitos, fragiliza as políticas públicas e criminaliza grupos e manifestantes que se opõem a essa fragilização. Recentemente tivemos a condenação de jovens participantes de atos contrários a realização da Copa do Mundo no Brasil a sete anos de prisão.
Esquivel:
Na década de 50 e 60 os Estados Unidos começaram a aplicar a chamada Doutrina de segurança Nacional [elaborada no pós Segunda Guerra, justificava a atuação das Forças Armadas, em países de interesse econômico e estratégico do EUA, para conter opositores ao regime em vigência]. Com o golpe de estado no Brasil em 1964, seguindo esta Doutrina, se implanta a Escola Superior de Guerra. Eu sou um sobrevivente da ditadura. Depois desta etapa começa a democratização da América Latina. Depois das Guerras das Malvinas [conflito entre Argentina e Reino Unido, em 1982] o exército compreende que o conflito posto estava entre países do norte versus sul. Então é necessário “democratizar” a América do Sul para contê-la: uma democracia condicionada, restrita, débil. A gente sabe que a democracia precisa ser construída, não nos é dada. E houve governos progressivas na América Latina, como no Brasil, na Bolívia, na Venezuela, as Revoluções Cubana e Sandinista e outros marcos na América Latina. Depois começaram a ver que estes governos progressistas não garantiam a política neoliberal e começaram a aplicar outro sistema de dominação que é a judicialização de governos progressistas: no Honduras derrubam Manuel Zelaya (2009), no Paraguai o Fernando Lugo (2012) e no Brasil a Dilma Rousseff (2016). Há um avanço de políticas de opressão do povo latino-americano. O mesmo ocorre com a prisão de Lula. Que democracia é essa que não permitem que Lula participe das eleições? Em visita ele nos disse que quer que se seja reconhecida a sua inocência. Tudo o que falamos dos meios de comunicação, de judicializar os governos progressistas, se chega a esta situação por conta da dominação econômica. Hoje estamos vivendo uma ditadura de mercado, financeira. Por exemplo: a dívida externa. O povo não pode pagar este dinheiro que nunca lhe chegou, mas é o povo que paga esta conta. Matematicamente tem aí três erros. Os valores podem ser alterados, mas sempre chegamos sempre a este resultado que é:  quanto mais pagamos a dívida externa, mais devemos e menos temos. Essa é a ditadura do mercado, do Fundo Monetário Internacional e do Banco Mundial.

"O governo progressista que quer a soberania tem que ser orientado pelas decisões do povo, é ele [o povo] que tem que decidir não só sobre os recursos naturais, mas também sobre os recursos financeiros. Mas hoje o país não pode decidir nada porque está refém da política de mercado, desta ditadura do mercado".

Esquivel: Vemos o aumento da pobreza, do desemprego, a concentração dos poderes e se fala em democracia. Se temos democracia, onde ela está? Temos que conter fortemente com a capacidade de resistência dos povos para assim conquistar a independência, senão podemos viver uma recolonização.
 

Terra de direitos: Temos olhado com muita atenção ao processo judicial respondido pelo ex-presidente Lula, mas movimentos sociais sofrem há tempos a criminalização pelo Estado. O que significa a criminalização pelo Estado para grupos e indivíduos que se opõem a ele?
Esquivel
– O sistema vai responder à resistência com repressão, com uso de forças militares exército que não tem consciência nacional porque estão a serviço dos grandes interesses econômicos, de um sistema econômico perverso, de concentração. Uma das coisas fundamentais que temos que avançar é a unidade continental. Hoje estão destruindo acordos e pactos, nessa ditadura descoberta o Brasil. É um estado de exceção, não é uma democracia.
 

"Estão destruindo os acordos regionais do Mercosul, Unasul [União das Nações Sul-Americanas] e o Celac (Comunidade de Estados Latino-Americanos e Caribenhos), ou seja, estão destruindo a integração que custou muitos anos de luta para que a recolonização da América Latina pela Europa e Estados Unidos avance".

 

Terra de direitos: Vivemos ciclos alternados de autoritarismo, com forças populares de resistência e momentos de maior democracia. O que o atual momento pode nos ensinar sobre os movimentos da história?
Esquivel:
Eu não creio nesta democracia que vivemos, são delegações. O povo delega todo o poder ao governo e depois ficamos indefesos. Necessitamos de uma democracia participativa onde o povo tenha o controle o tempo todo. Isso significa participação direta e não controle institucional. Para que depositamos todo o poder em um governo e se um governo não faz o que delegamos? É preciso termos melhores mecanismos de controle de poder. Se o povo não tem controle do poder estamos perdidos, ocorre o que está acontecendo agora.
 

Terra de Direitos: O senhor teve uma agenda muito intensa em sua passagem pelo Brasil, com contato e escuta à diversos movimentos populares e realidades. O que o senhor viu sobre o povo brasileiro nestes dias?
Esquivel:
O povo brasileiro terá que encontrar seu caminho. Houve uma possibilidade muito grande durante o governo Lula de começar a reverter a desigualdade e emergir socialmente, cultural porque o que acontece no Brasil tem influência em todo o continente. Como que podemos chegar a articular e a compartilhar, não só o econômico, mas também o cultural social e político? Hoje temos uma crise dos dirigentes políticas no continente. Deputados e senadores que se vendem por 30 moedas, que não sobrepõem os interesses do país aos seus interesses, as esquerdas que não logram articular forças conjuntas. Agora, o sistema de dominação dos grandes poderes econômicas não descansa. Eles têm avançado no esforço de desarticular movimentos sociais na América Latina. Temos então que voltar a pensar em tudo.

"No fundo tudo aquilo que estamos fazendo é a luta pela liberdade. Não é por um problema econômico apenas, é se somos donos do nosso próprio destino, é sobre que mundo vamos deixar para nossos filhos e os filhos de nossos filhos, se é um mundo livre ou escravo. E por isso que estamos aqui".
 

Terra de Direitos: Para o senhor, mirando sua própria história, a história de resistência e a do mundo, o que significa afirmar que a gente ainda luta pela liberdade no século XXI?
Esquivel
: A luta pela liberdade passa para que não seja roubada a vida e a esperança dos povos. Para que os jovens possam ser homens e mulheres livres e não escravos, possam decidir sobre seu próprio destino. Que tenham a capacidade de reencontro com a comunidade, ou seja, o reencontro com uma identidade, o sentimento de pertencimento, a ter memória. E a memória não é para ficar no passado, mas para iluminar o presente. E a partir do presente poder gerar e construir uma vida. Nós não podemos dizer” vivam de tal maneira”, os jovens que tem que dizer como querem viver.




Eixos: Política e cultura dos direitos humanos