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“Nossos produtos apodrecem na terra ou temos que vender bem abaixo do valor pra podermos ter um dinheiro”


Impedidas de emitir nota de produtor, famílias quilombolas de Gramadinho (PR) sofrem dificuldades para comercializar a produção de alimentos.

Liderada por mulheres, a Comunidade quilombola de Gramadinho produz alimentos de base agroecológica. Foto: Arquivo da comunidade

Imagine o intenso trabalho para uma comunidade quilombola plantar, colher e comercializar sua produção? Agora, acrescente à essas dificuldades – em um contexto de empobrecimento do campo intensificada pela última gestão governamental - a ausência e não cobertura desta comunidade por uma política ou programa de fortalecimento da produção agroecológica de alimentos? E mais, considere os impactos do desmonte da política quilombola no governo de Jair Bolsonaro (PL), com orçamento quase nulo para titulação e políticas essenciais para estes povos, entre elas ações voltadas para assistência produtiva?  

Ainda que as agricultoras e agricultores agroecológicos quilombolas da Comunidade de Gramadinho, localizada no município de Doutor Ulisses (PR), transponham todos estes obstáculos estruturais, há também barreiras formais para que a comunidade possa emitir a nota do produtor na comercialização dos alimentos e com isso sair da informalidade comercial. Isto porque há um impedimento legal no estado do Paraná para emissão de nota do produtor por comunidades quilombolas não tituladas.  

“Jogam a gente de um lado para o outro enquanto nossos produtos apodrecem na terra quando não vendemos bem baratinho, bem abaixo do valor pra podermos ter um dinheirinho. Para nos quilombolas nada se resolve com rapidez”, destaca a liderança quilombola Laura Rosa, sobre as várias tentativas da Comunidade de acesso à nota do produtor, como reuniões com promotorias, Prefeitura e secretarias do município.  

“Por não termos conseguido a nota do produtor não podemos comercializar nossos produtos que temos na comunidade. Lutamos todos estes anos por melhorias de vida, de sustentabilidade, mas em todas as portas que batemos são fechadas pra nós”, completa Laura.  

A Secretaria da Fazendo do Estado do Paraná (Sefaz-PR) exige, como documento necessário para a solicitação de inscrição do Cadastro do Produtor Rural (CAD/PRO), que uma comunidade quilombola apresente o título de reconhecimento do território tradicional. Ocorre que o processo de titulação pelo Estado brasileiro é moroso, com várias etapas e diretamente afetado pela ausência de priorização política dos governos, como já denunciado em vários momentos, e com isso, a Comunidade quilombola de Gramadinho tem sido diretamente afetada. 

O processo de titulação do Quilombo do Varzeão, em que tem Gramadinho como um dos seus núcleos, encontra-se em andamento desde 2004. A Comunidade de Varzeão foi certificada pela Fundação Cultural Palmares em 2003 e desde então aguarda avanço no andamento nas demais etapas de regularização fundiária.  

Como a Comunidade de Gramadinho possui uma compreensão distinta à de Varzeão na gestão do território – estruturada por pilares da agroecologia no manejo do solo – Gramadinho deu início, em 2011, ao processo administrativo para titulação quilombola após formalizar a Associação Remanescente dos Quilombos de Gramadinhos/PR e Região, a pessoa jurídica da comunidade. No momento a comunidade aguarda a certificação da Fundação Palmares desde então, solicitada então há 12 anos. A certificação, momento em que a comunidade se autoreconhece como quilombola perante o Estado brasileiro, é a primeira e a apontada como a etapa mais rápida das seis determinadas no processo de titulação pelo Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra), autarquia que responde pele regularização fundiária quilombola. Ainda assim, enquanto o processo de certificação do Quilombo Gramadinho não for concluído pela Palmares, a Comunidade de Gramadinho permanece vinculada ao processo de certificação e regularização fundiária do Quilombo de Varzeão, para efeitos de acesso às políticas públicas.  

Mesmo sem a titulação de Varzeão ou Gramadinho, o acesso à políticas públicas pelas comunidades do PR e ou demais estados já está assegurado às comunidades quilombolas por meio de diversas normativas nacionais, como a Política Nacional de Desenvolvimento Sustentável dos Povos e Comunidades Tradicionais, instituída em 2007, ou a Lei Federal 12.188/2010 incluiu comunidades quilombolas como beneficiários da Política Nacional de assistência Técnica e Extensão Rural para a Agricultura Familiar e Reforma Agrária. Tanto que o estado do Espírito Santo já emite nota fiscal para o produtor rural quilombola independente do estágio do processo de regularização fundiária da comunidade tradicional.  

A não dependência da existência do título para emissão da nota do produtor foi objeto específico de nota conjunta do Centro de Apoio Operacional das Promotorias de Justiça de Proteção aos Direitos Humanos e do Centro de Apoio Operacional das Promotorias de Justiça de Proteção ao Patrimônio Público e à Ordem Tributária. Na nota os órgãos destacam que a emissão da nota do produtor “não depende do título da posse ou da propriedade rural onde será exercida a atividade agrícola passível da incidência do ICMS” e que “inscrição no CAD/PRO é, pois, uma obrigação tributária acessória a que se sujeita todo e qualquer produtor rural, seja ele proprietário da terra ou não”, apontam alguns trechos do documento.  

Para a Terra de Direitos, o governo do estado do Paraná deve reconhecer as especificidades das realidades do processo de titulação das comunidades quilombolas e adaptar as regras à estas especificidades. “Se o governo do Paraná reconhecer esta especificidade de modo administrativo o estado contribui para a possibilitar que a comunidade emita mais rapidamente a nota do produtor, destaca a assessoria jurídica da Terra de Direitos, Kathleen Tie. A assessoria tem incidido junto ao Conselho Estadual dos Povos e Comunidades Tradicionais do Paraná para acelerar este processo junto à Secretaria da Fazenda e também assessora a Comunidade de Gramadinho no processo de regularização fundiária. 

Outro destaque feito pela assessoria jurídica da organização é que a norma da Secretaria da Fazendo do Paraná utiliza a Instrução Normativa 49/2008 do Incra como referência para exigência de apresentação do título para o cadastro no CAD/PRO. No entanto, a normativa do Incra já foi revogada em 2009 e reconhecida pelo Estado como desconexa com realidade predominante de não titulação das comunidades quilombolas.  

Em uma das ações para reivindicar a nota do produtor, a comunidades esteve reunida com a Prefeitura de Doutor Ulisses e o Promotor de Cerro Azul. Foto: Terra de Direitos

Comunidades quilombolas do Paraná violadas 
A impossibilidade de emissão da nota do produtor pela Comunidade de Gramadinho revela um cenário de obstáculo para comercialização formal de alimentos por todas comunidades quilombolas do Paraná. Isso porque das 38 comunidades apenas uma, a de Paiol de Telha, tem o título concedido do território tradicional, e ainda é uma titulação parcial (o que significa que apenas algumas áreas da comunidade têm título de concessão).  

“Me parece que estão querendo penalizar as comunidades quilombolas, se a culpa de tudo isso é a morosidade do Incra em titular todos os territórios, culpa do governo federal que cortou quase que totalmente o orçamento para haja titulação, impedindo assim a chegada das políticas públicas nestas comunidades, causando um impacto com grande destruição na renda destes famílias que precisam vender seus produtos para sustento dos seus familiares, dificultando a sobrevivência das comunidades que já vivem com esse contexto político que o Brasil atravessa de retorno ao mapa da fome”, enfatiza o coordenador da Federação das Comunidades Quilombolas do Paraná (Fecoqui), Alcione Ferreira da Silva 

“É um impedimento não só da emissão da nota, mas impede a comunidade de sobreviver. Como estas comunidades vão sobreviver sem renda e de onde tirar o sustento? Essa pergunta fica. As comunidades precisam ir para a cidade para comprar muitas coisas, já que nem tudo a comunidade produz de alimentos e há outras necessidades das famílias também”, complementa Alcione.  

Impacto fiscal e previdenciário  
O impedimento da emissão da nota do produtor também impacta o acesso a direitos previdenciários à comunidade de Gramadinho, como a aposentadoria. Isto porque a Lei de Benefícios da Previdência Social determina que notas fiscais de entrega e saída de mercadorias e bloco de notas do produtor são comprovantes da atividade rural. Sem estes documentos, as e os quilombolas terão dificuldades em comprovar a atividade agrícola que desempenham. 

Outro impacto é na arrecadação de tributos e ICMS das atividades rurais da Comunidade. Sem poder emitir a nota a comunidade de Gramadinho não tem como contribuir com a receita tributária - recurso público essencial para o custeio de serviços e obras públicas. O não recolhimento de tributos implica em até responsabilização fiscal do gestor público, como o Prefeito do município e governador do estado.  

“Ninguém ganha com o impedimento da emissão da nota do produtor para a Comunidade quilombola de Gramadinho. As e os agricultores deixam de comercializar formalmente a produção de alimentos, o poder público deixa de receber os tributos pela emissão de notas e a sociedade de modo geral deixa de ganhar com o reinvestimento da receita em obras e políticas públicas, por exemplo”, complementa a assessora jurídica.  



Ações: Quilombolas

Eixos: Terra, território e justiça espacial