Ocupação Indígena: Justiça Federal determina reintegração de posse da BR-163 com intervenção da força policial
Lanna Paula Ramos
Povos indígenas e movimentos populares ocupam a rodovia há 14 dias em defesa do direito à educação escolar indígena
Em decisão no final do dia de terça-feira (28), o juiz federal Felipe Gontijo Lopes determinou que povos indígenas e movimentos populares desocupem a BR-163, na altura do km 922. Na decisão sobre a ação movida pela Advocacia Geral da União (AGU), o juiz ainda determina a presença de todas as forças policiais locais para desocupação, com autorização do uso da força. Na avaliação dos povos indígenas a decisão desrespeita o direito à manifestação.
O magistrado estabeleceu multa de 10 mil reais caso os manifestantes resistam à desocupação e autorizou a presença da Polícia Militar, Polícia Rodoviária Federal e Polícia Federal.
Os manifestantes foram surpreendidos pela decisão de desocupação. “Essa decisão representa a continuidade do genocídio do povo Munduruku, que teve o seu território invadido pela BR-163 há 50 anos. Se o juiz decidiu pela desobstrução, incluindo o uso da força, essa decisão vai tirar o sangue dos nossos parentes, vai violentar nossos parentes, então ele está continuando o genocídio que aconteceu há 50 anos atrás, bem como a união que entrou com a ação”, declarou Marcílio Tupinambá, uma das lideranças do movimento de ocupação.
Povos indígenas de diversas etnias do estado, profissionais da educação e movimentos populares estão desde o dia 16 de janeiro paralisando o tráfego de veículos na BR-163, na altura do município de Belterra, no Território Indígena Munduruku Takauara e Bragança, como forma de reivindicação pela revogação da Lei 10.820/2024 e exoneração do Secretário de Educação do Estado do Pará, Rossieli Soares.
A área interdita na BR-163, apontam os indígenas, faz parte do território indígena Munduruku, Takauara, Bragança e Marituba, portanto, eles estão ali autorizados pelo povo originário. Um relatório da Fundação Nacional dos Povos Indígenas (Funai), parte do processo de demarcação da terra indígena, reconheceu que a BR-163 atravessou a área do território.
Segundo Marcílio, a escolha foi estratégica porque mesmo que a reivindicação se trate de uma medida legislativa estadual, a União precisa se posicionar pela defesa da educação indígena. “Estrategicamente, nós estamos ocupando aqui porque não é que nós estejamos ocupando a BR, nós estamos ocupando o território. Muito embora a pauta que nós estamos exigindo - a revogação da Lei 10.820 e a exoneração do secretário da educação seja no âmbito do estado - quem está solicitando a desocupação é a União e o estado faz parte da união, então nós entendemos que nós estamos num lugar, sim, estratégico e legítimo para a gente fazer a nossa reivindicação e a nossa manifestação precisar ser atendida”.
A Lei 10.820/2024, entre outras questões, compromete gravemente o Sistema Modular de Ensino (Some) e o Sistema Modular de Ensino Indígena (Somei). Na avaliação dos movimentos e povos indígenas, a medida precariza a carreira docente estadual com o corte das gratificações de professores dos dois sistemas inviabilizando a atuação presencial dos professores nas aldeias. Com isso, o ensino presencial deve ser substituído pelo ensino a distância, mediado pelo Centro de Mídias da Educação Paraense (Cemep).
Para os manifestantes, essa mudança ignora as especificidades étnicas, socioculturais e estruturais dos povos indígenas, colocando em risco a qualidade da educação para essas populações. A Lei foi aprovada na Assembleia Legislativa do Pará (Alepa) em dezembro do ano passado, sem o necessário debate público com a população afetada pelas medidas. A ausência de consulta aos povos também viola direito à consulta prévia, livre e informada aos povos afetados assegurado na Convenção 169 da Organização Internacional do Trabalho (OIT), ratificada pelo Brasil.
Direito à livre manifestação
O direito à livre manifestação, expressão e ao protesto como parte da democracia tem sido defendido por movimentos e organizações sociais que apoiam as ocupações indígenas que ocorrem por todo o Pará. Para a assessora jurídica da Terra de Direitos, Bruna Balbi, que acompanha o Conselho Indígena Tapajós e Arapiuns (Cita) – um dos intimados na ação – a decisão de reintegração de posse pela Justiça Federal é bastante controversa, uma vez que as manifestações e protestos são parte do exercício da democracia e ocorrem em área indígena.
“Os povos indígenas estão ocupando um território originário, em uma luta legítima e pacífica pela manutenção de um direito constitucional. O Estado não pode restringir o direito à manifestação, salvo sob justificativa prevista em lei, conforme decisão da Corte Interamericana de Direitos Humanos no Caso Antônio Tavares”, ressalta. As decisões da Corte devem ser aplicadas aos países membros do sistema interamericano, do qual o Brasil faz parte.
Um dos argumentos utilizado pelo juiz federal na decisão desconsidera o motivo da reivindicação que leva os povos indígenas e professores a se manifestarem – a defesa da educação escolar de qualidade. “Com efeito, primeiro, há que se ressaltar que, o pano de fundo do ato de obstrução, a causa ou motivo da insurgência, não releva para esta análise, até porque não é objeto deste feito e, ao que se colheu na audiência preliminar, tratar-se-ia de medida política do Estado do Pará, que estaria afetando a educação, de indígenas e não indígenas. Em suma, a pauta reivindicatória não faz do ato de obstrução legal ou não”, diz a recente decisão
Em recurso de contestação da ação feita pelo Ministério Público Federal (MPF) no dia 23 de janeiro, o procurador da República Vítor Vieira Alves apontou a necessidade de observação do direito à manifestação em espaços públicos, conforme já reconhecido pelo Supremo Tribunal Federal (STF). Na recente decisão, essa solicitação não foi acolhida pela Justiça Federal.
“A situação da ocupação indígena que ocorre em todo Pará tem revelado um quadro de insegurança jurídica em diversos aspectos: na fragilização da educação escolar para povos indígenas, da floresta e do campo, na iminência de violação do direito à manifestação e de proteção à vida e integridade física dos manifestantes.” aponta Bruna Balbi.
A Terra de Direitos, junto a advogados indígenas, dos professores e advogados populares da região, atua para garantir a segurança e o direito à ocupação da BR-163.
Sobre a Lei 10.820 e as manifestações contrárias
Os protestos contra a Lei 10.820/2024, enviada para a Assembleia Legislativa do Pará pelo governador Helder Barbalho (MDB), iniciaram em dezembro do ano passado. Colocado em pauta para ser votado pela Alepa, em caráter de urgência na última sessão ordinária do ano de 2024, o projeto de lei modifica o Estatuto do Magistério Público do Estado do Pará, alterando plano de cargos e carreiras, gratificações e os sistemas modular de ensino regular e indígena. O PL foi aprovado com 27 votos a favor e 10 contra.
Professores da rede pública estadual de ensino realizaram, uma manifestação em frente o à Assembleia, em Belém, no dia da votação, na tentativa de tentar barrar o PL, mas foram recebidos sob forte repressão da Polícia Militar. A Lei 10.820/2024 foi sancionada pelo governador no dia 19 de dezembro, um dia após a aprovação.
No dia 14 de janeiro, cerca de 300 indígenas de diversas etnias do Pará ocuparam a sede da Secretária de Educação do Pará (Seduc), em Belém, em protesto contra a fragilização da educação escolar indígena. Além da ocupação da Seduc, trechos de rodovias federais no estado, como na BR-163, também estão sendo ocupadas por manifestantes em apoio à ocupação da Seduc, pela revogação da lei e a exoneração do atual secretário de educação. Quilombolas, ribeirinhos, comunidades rurais, professores e movimentos populares aderiram às ocupações.
Já são mais de 15 dias de manifestações contrárias à Lei 10.820, sem qualquer recuo do governo do Pará. Nesta terça-feira (28), após mediação da ministra dos povos indígenas, Sônia Guajajara, o governador Helder Barbalho aceitou receber as lideranças do movimento de ocupação. No entanto, a reunião foi marcada por abusos, como a forte presença da força militar e fechamento de vias próximas ao Palácio do Governo. As lideranças foram impedidas de entrar com celulares e a imprensa também não pôde acompanhar a reunião, que terminou sem acordo.
A situação foi denunciada pelos manifestantes nas redes sociais “É assustadora a forma como o Governo do Estado do Pará recepciona pessoas, defensores de direitos humanos, comunidades tradicionais e povos originários da Amazônia. O tanto de polícia, viatura, o esquema de segurança para receber essas populações, lideranças, que estão lutando por uma política pública que é a educação de qualidade” afirmou uma liderança quilombola.