Editorial: Direito territorial indígena não pode ser negociado
Terra de Direitos
Terra de Direitos manifesta apoio à saída do Movimento Indígena da Câmara de Conciliação do Supremo Tribunal Federal.
O dia 28 de agosto fica marcado na história como um momento emblemático da luta pelo direito ao território dos povos indígenas e de vergonha do sistema de justiça. A Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (Apib) anunciou a sua saída da Câmara de Conciliação criada pelo Supremo Tribunal Federal (STF) para discutir a Lei 14.701/2023 – chamada por alguns de Lei do Marco Temporal, e pelos povos originários de ‘Lei do Genocídio Indígena’. Nesta data a Corte Suprema realizou a 2ª mesa de conciliação no conjunto de ações judiciais que questionam a constitucionalidade da “tese do marco temporal”.
Defendido por setores que desejam explorar territórios indígenas, como a mineração e o agronegócio, de acordo com essa tese só devem ser reconhecidos como territórios indígenas os que eram ocupados pelos povos originários no dia 05 de outubro de 1988, data de promulgação da Constituição Federal. A tese ignora o extermínio e genocídio por que passaram e passam os povos originários. E ignora que direitos fundamentais não possuem prazo de validade.
Aprovada em setembro de 2023, a Lei 14.701 foi uma reação das bancadas ruralista e da mineração no Congresso Nacional à decisão do STF que, poucos dias antes, tinha declarado a inconstitucionalidade da tese no julgamento de um Recurso Extraordinário. Desde a aprovação da Lei e amparados na tese do marco temporal, o país vive um aumento de ataques aos povos indígenas. O Povo Avá-Guarani, da Terra Indígena Tekoha Guasu Guavirá (PR), por exemplo, tem sofrido intensa ameaça por fazendeiros locais contrários a demarcação do território com novos ataques ainda nesta semana.
As reuniões da mesa de conciliação feriram diversos direitos humanos e socioambientais. Ignorando a decisão plenária do STF que declarou a inconstitucionalidade da tese do marco temporal em setembro do ano passado, o ministro Gilmar Mendes determinou, de modo monocrático (individual), que fosse estabelecido uma comissão de conciliação. Com isso o ministro transformou a Corte num balcão de negócios. A criação da Câmara de Conciliação é uma afronta ao ordenamento jurídico brasileiro, que não prevê competência do STF para conciliar as partes sobre possível inconstitucionalidade de lei. É necessário também destacar que a criação da Câmara de Conciliação endossa a ofensiva parlamentar contra os direitos territóriais indígenas. Neste quadro também se localiza a Proposta de Emenda Constitucional 48/2023, que insere em definitivo a tese do marco temporal como definidora da demarcação dos territórios indígenas.
O direito à terra dos povos indígenas é um direito fundamental. Uma das características dos direitos fundamentais é que estes são imprescritíveis. Isto quer dizer que não possuem prazo de validade, nem inicial, nem final. Além disso, a Convenção 169 da Organização Internacional do Trabalho prevê em seu artigo 16, parágrafo 3, o direito à retomada dos territórios indígenas: "Sempre que for possível, esses povos deverão ter o direito de voltar a suas terras tradicionais assim que deixarem de existir as causas que motivaram seu translado e reassentamento". O que não deixa dúvidas sobre a inconstitucionalidade da referida lei.
É importante lembrarmos que a Lei do Genocídio Indígena trata, ao fim e ao cabo, de direitos humanos. É o que afirma a Declaração da Organização das Nações Unidas sobre os Direitos dos Povos Indígenas, que reconhece os direitos humanos e coletivos dos povos indígenas. Estes direitos são direitos universais e inegociáveis: nem mesmo os detentores dos direitos humanos podem abrir mão deles. Não são direitos que possam estar sendo debatidos em sede de conciliação. Eles possuem a característica de indisponibilidade, um limite ao próprio Direito e ao poder do Estado, que tem o dever de protegê-los. E é ainda mais alarmante que a Corte constitua um balcão de negócios justamente com partes interessadas na exploração dos territórios indígenas.
Ao tratar de direitos de povos indígenas estamos falando também de direitos coletivos. Além de direitos inegociáveis, imprescritíveis, estes direitos são juridicamente indivisíveis. Os direitos coletivos pertencem a todo o povo e a todos os povos, por isso a nenhum deles cabe negociar em nome dos demais. Isto porque a lesão ao direito que possa advir da conciliação não ficaria somente com quem negociou diretamente, mas prejudicaria a todos.
Os povos indígenas há séculos vêm deixando um legado de ensinamentos aos brancos sobre a diversidade da vida, a interdependência entre os seres, eles vêm segurando o céu e possibilitando a vida na terra. Agora aos povos indígenas coube ensinar aos brancos até mesmo como interpretar o próprio Direito.
A Terra de Direitos manifesta seu apoio à decisão do movimento indígena e se junta ao coro de juristas que exclama que o Supremo Tribunal Federal não pode se furtar ao dever de julgar a inconstitucionalidade da Lei 14.701/2023 e defender os direitos assegurados na Constituição Federal. Pelo encerramento imediato da Câmara de Conciliação e julgamento das Ações Diretas de Inconstitucionalidade 7582, 7583, 7586.
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Eixos: Política e cultura dos direitos humanos