Saída da Cargill da Moratória da Soja põe em xeque máscara de empresa sustentável e com compromisso ambiental
Assessoria de comunicação Terra de Direitos
No início de fevereiro, uma reportagem da Repórter Brasil revelou que a multinacional Cargill modificou a “data de corte” da soja comprada em áreas da Amazônia, passando a considerar 2020 como limite, em vez de 2008, como estipulado pela Moratória da Soja. Essa mudança afrouxa as regras e sinaliza uma possível saída da empresa do acordo que visa combater o desmatamento da Amazônia.
A Moratória da Soja é um acordo assinado entre indústrias, exportadores da Associação Brasileira das Indústrias de Óleos Vegetais (ABIOVE) e da Associação Nacional dos Exportadores de Cereais (ANEC), junto ao Ministério do Meio Ambiente, o Banco de Brasil e Organizações Não Governamentais, que prevê que as empresas signatárias não comprem soja proveniente de áreas desmatadas após julho de 2008. A data estabelecida pela moratória considera a possibilidade de monitorar dados a partir de ferramentas que estavam bem desenvolvidas e com informações atualizadas naquele período, como o PRODES (Programa de Cálculo do Desflorestamento na Amazônia Brasileira), e que poderiam ser utilizadas para a fiscalização.
A mudança da data de corte da soja significa ampliar em 12 anos a data limite para a compra de soja cultivada em áreas desmatadas na Amazônia, o que favorece produtores que se valeram da degradação ambiental após 2008 com objetivo de aumentar a exportação da empresa.
Com essa alteração, a Cargill não está apenas mudando sua política ambiental, mas também esvaziando um pacto essencial para a preservação da Amazônia. Essa movimentação significa uma adesão aos interesses financeiros e políticos do agronegócio, e um retrocesso para políticas de preservação ambiental e de combate a crise climática.
Embora a Moratória da Soja tenha pontos críticos, como as falhas nas formas de monitoramento e fiscalização das áreas desmatadas, também apresenta resultados positivos. A própria Cargill destacou o “sucesso” da moratória em relatório de 2015, indicando que, após esse pacto, as taxas de desmatamento anual na Amazônia caíram 80%. O que a empresa não pontua é que a queda no desmatamento também contou com o desenvolvimento de políticas públicas como o Plano de Ação para Prevenção e Controle do Desmatamento na Amazônia Legal (PPCDAm).
A decisão da Cargill, no entanto, expõe a contradição entre seu discurso (sustentável) e sua prática (predatória). Nos últimos anos, a empresa tem se posicionado nacional e internacionalmente como defensora da sustentabilidade, adotando um discurso “verde” e sustentável de comprometimento com o combate às mudanças climáticas. Mas a saída da Moratória da Soja demonstra que, na prática, a empresa está flexibilizando suas regras ambientais em nome de lucros financeiros e interesses de mercado.
Isso confirma o argumento apresentado no estudo Sem licença para destruição: Cargill e as falsas soluções para crise climática, desenvolvido pela Terra de Direitos. O estudo revela que a Cargill pratica greenwashing (lavagem verde, em tradução literal) ao divulgar falsas estratégias de sustentabilidade e enfrentamento das mudanças climáticas enquanto atua no retrocesso ambiental e viola direitos de povos e comunidades tradicionais.
A seguir, destacamos três consequências da possível saída da Cargill da Moratória da Soja:
1. A Cargill estaria incentivando a “legalização” do desmatamento e os incêndios criminosos na Amazônia
Ao sinalizar a saída do acordo, deslocando a “data de corte” da compra de soja cultivada em áreas na Amazônia para 2020, a empresa beneficia quem continuou a desmatar até aquele ano, ou seja, a Cargill está, indiretamente, apoiando “sojeiros desmatadores” que derrubam a floresta para plantação. Além disso, impulsa ainda mais o avanço da monocultura na região. São ao menos 2,5 milhões de hectares desmatados desde 2009 transformados em campos de soja, como aponta a Repórter Brasil.
Com a expansão do prazo limite em 12 anos, a Cargill poderia aumentar a exportação de soja comprando, por exemplo, de áreas que foram incendiadas criminosamente no Dia do Fogo, em 2019, e que hoje abrigam plantações de grãos. Com a flexibilização das regras pela Cargill, esses produtores poderiam agora regularizar suas plantações de soja, provenientes de áreas incendiadas ilegalmente.
2. A flexibilização das regras da Moratória da Soja pode intensificar a invasão de territórios tradicionais
A flexibilização das regras da Moratória da Soja pode agravar ainda mais as violações de direitos territoriais de povos e comunidades tradicionais. Além de depender da floresta em pé para a manutenção do seu modo de vida, o incentivo ao avanço da soja e “legalização” do desmatamento ocorrido entre 2008 e 2020 abre caminho para a grilagem e a especulação de terra, pressionando e ameaçando os territórios.
No oeste do Pará, essa é uma realidade vivida pelos povos indígenas, quilombolas e comunidades tradicionais há pelo menos 20 anos. A chegada do porto da Cargill, instalado às margens do Rio Tapajós em Santarém, impulsionou o cultivo de soja na região e tem impactado territórios indígenas e tradicionais. O povo indígena Munduruku, localizado no Planalto Santareno, convive lado a lado com as plantações de soja que trazem inúmeros impactos negativos, como a derrubada da mata e a contaminação de rios, nascentes e igarapés por conta do uso de agrotóxicos nas lavouras.
Em municípios próximos a Santarém, como Belterra e Mojuí dos Campos – que ficam ao longo da BR 163, principal via de escoamento dos grãos para os portos do Tapajós -, as comunidades tradicionais também têm sofrido com a transformação causada pelo cultivo da soja. Em Mojuí dos Campos ao menos 19 comunidades desaparecem por completo devido à pressão da monocultura da soja.
3. A destinação de mais áreas desmatadas para a venda de soja pode contribuir com a destruição da vida na Amazônia e intensificar a crise climática
Com a mudança do limite de prazo para compra de soja de áreas desmatadas para 2020, a cadeia da soja passa a incluir soja plantadas em áreas de desmatamento ilegal, que têm contribuído para a destruição da Amazônia, do aumento dos efeitos das mudanças climáticas e perda da biodiversidade.
Dados do Sistema de Estimativas de Emissões de Gases de Efeito Estufa do Observatório do Clima (SEEG) apontam que as mudanças de uso da terra – que abrangem desmatamento, queimadas e a criação de pastagens e lavouras - respondem por 46% de todos os gases estufa que o Brasil lançou na atmosfera em 2023. A emissão dos gases estufa tem relação direta, apontam os especialistas, com o aumento global da temperatura.
Junto com o avanço da soja e do desmatamento, a monocultura incentivada pela empresa carrega para os territórios amazônicos a contaminação do solo e águas pelo uso indiscriminado de agrotóxicos, a diminuição de áreas de caça e pesca, bem como os impactos ambientais e sociais de grandes projetos de escoamento da soja, como portos e ferrovias – como a Ferrogrão – que fazem parte da infraestrutura do agronegócio.
Os mecanismos de maquiagem verde (greenwashing) construídos pela Cargill podem estar no fim com esse novo posicionamento. No entanto, é necessário alertar que ainda assim a empresa continua apresentando para a sociedade uma falsa ideia de empresa verde, sustentável e com compromisso ambiental, enquanto em diversas outras instâncias segue incentivando o monocultivo da soja e do milho, instalando portos sem consulta às comunidades e violando os direitos de povos tradicionais.
Saiba mais sobre as violações de direitos promovidas pela Cargill no Tapajós no site Sem Licença Para Cargill
A instalação de um porto da Cargill em Santarém (PA), no início dos anos 2000, foi determinante para o avanço da produção de soja e para criação de uma infraestrutura do agronegócio na região. Acesse o portal Portos no Tapajós e saiba como os empreendimentos estão sendo instalados com descumprimento de normas ambientais e com a violação de direitos dos povos do Tapajós: https://portos.terradedireitos.org.br/
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