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Amazônia em pauta: entre agendas internacionais e ataques a indígenas e comunidades tradicionais no Brasil


As indígenas Alessandra Muduruku e Vândria Borari participaram da Marcha Mundial pelo Clima, em Berlim / Foto: Portal GGN.

Mais uma grande agenda internacional voltada à discussão dos problemas relacionados à Amazônia e seus povos indígenas, povos e comunidades tradicionais foi iniciada neste domingo, dia 6 de outubro: o Sínodo para a Amazônia. Trata-se de um encontro entre o Papa Francisco e líderes religiosos da Igreja Católica que atuam na região amazônica brasileira e internacional.

Esse encontro, que tem como tema central “Amazônia: novos caminhos para a Igreja e para uma ecologia integral”, foi convocado ainda em outubro de 2017 e tem como objetivo avaliar e propor redirecionamentos da atuação da Igreja em relação aos problemas ambientais e sociais e melhorar sua presença evangelizadora no maior bioma do planeta. Segundo o Papa Francisco, na missa de abertura desse domingo, “o fogo que devastou recentemente a Amazônia foi ateado por interesses que destroem”, por isso, a necessidade de se privilegiar “o fogo do amor de Deus, que não é devorador e aquece e dá vida”.

Coincidentemente ou não, o Sínodo para Amazônia vem pouco tempo depois da de duas agendas que tomaram grande proporção internacional e que pautaram fortemente a questão ecológica e a Amazônia: a greve global pelo clima e a Assembleia Geral da Organização das Nações Unidas. Esses episódios vêm definindo cada vez com maior nitidez os polos pelos quais as ações coletivas tendem a se mobilizar nos próximos momentos e, principalmente, destacado as pautas que povos tradicionais da Amazônia têm se colocado a lutar, há muitos anos.

Em seu discurso na greve global pelo clima na Alemanha, a indígena Alessandra Munduruku disse que “hoje no Brasil a nossa Amazônia a cada dia, a cada minuto vem sendo ameaçada. Com o garimpo, madeira, soja, carne bovina, mineração, barragens, ferrovias, hidrovias e portos graneleiros”. Não custa lembrar que nos últimos três meses a Amazônia registrou os maiores índices de queimadas dos últimos anos. Em julho houve o aumento de 278% do desmatamento. Só em agosto registrou-se o maior número de focos de incêndios dos últimos nove anos. O Sistema de Alerta de Desmatamento (SAD) detectou uma área total desmatada de 886 km2, sendo que Altamira e São Félix do Xingu, no sudoeste do Pará, permanecem no topo do ranking do desmatamento. Ao todo, os impactos das queimadas atingiram uma área de quase 30 mil km2.

Investigações preliminares do Ministério Público Federal apontam que grande parte dessas áreas são fruto da grilagem que assola a região. Grilagem que vem acompanhada de exploração de madeireira ilegal, devastação e queimada de áreas de florestas para produção bovina e implantação de monoculturas, além de outros problemas relatados, inclusive no VI Colóquio Internacional de Povos e Comunidades Tradicionais, ocorrido na cidade de Montes Claros (MG) de 24 a 26 de setembro de 2019.

No Pará, há um mês, foi aprovada, em regime de urgência – e em descumprimento ao Regimento Interno da Assembleia Legislativa e à própria Constituição do Estado – a nova Lei de Terras (Lei Estadual nº 8.878, de 08 de julho de 2019), que já está facilitando a legalização de milhares de hectares de terras griladas. Esse modelo de “Estado de Direito” tende ser adotado também por outras federações.

Deste mesmo lado, com mais força a partir do início de 2019, somos obrigados a encarar um cenário de desmonte institucional, acompanhado por diminuição de aporte de recursos para áreas primordiais para a natureza e para os povos e comunidades tradicionais. Foi o caso da Medida Provisória nº 870, de 01 de janeiro, que retirou diversas competências do Ministério do Meio Ambiente, por exemplo.

Consequentemente, o Conselho Nacional de Povos e Comunidades Tradicionais, importante instância de encontro, deliberações e proposições de políticas públicas em prol dos povos e comunidades tradicionais, foi paralisado. Conselho este que, há anos, vinha norteando debates e protagonizando avanços no campo dos grupos étnicos coletivos no Brasil.

Além disso, apesar de uma promessa de diminuição dos desmatamentos e das queimadas, há uma redução de 24% no orçamento anual do IBAMA e o contingenciamento de R$ 187 milhões do Ministério do Meio Ambiente.

Em relação ao tema queimada, por exemplo, os povos indígenas e povos e comunidades tradicionais utilizam como práticas de roçado as chamadas técnicas “roça de toco” ou “coivara”, que usam o manejado do fogo para abertura de pequenas áreas que servirão para os cultivos anuais. O que diferencia essa prática tradicional e milenar das grandes queimadas na Amazônia é a quantidade de área queimada e o uso controlado do fogo. Em geral, o manejo tradicional do fogo é realizado em áreas entre um a quatro hectares de terra. A utilização dessa técnica pelos povos indígenas é prova de que essa prática não é responsável pelos grandes incêndios. Nos últimos 40 anos, 20% da floresta amazônica foi devastada, enquanto menos de 2% das florestas originais dentro de Terras Indígenas foram perdidas.

Ataques legislativos

O cenário de Norte a Sul do País não é tão estimulante por parte da ação pública – daí a necessidade de o Poder Legislativo aumentar a fiscalização e incluir-se nos debates parlamentares que podem propulsionar a luta popular.

No início de setembro, a Câmara acelerou a votação do Acordo de Alcântara mesmo não tendo havido consulta prévia, livre e informada às comunidades afetadas, principalmente as comunidades quilombolas do Estado do Maranhão. Os deputados aprovaram, por 330 votos a 98 contrários, o requerimento de urgência para votação do Acordo de Salvaguardas Tecnológicas (AST), assinado em março desse ano entre os governos do Brasil e dos Estados Unidos. O Acordo regula o uso comercial do Centro de Lançamento de Alcântara (CLA), no estado do Maranhão, por parte do governo norte-americano e de empresas estadunidenses e estabelece ações de fortes impactos às, aproximadamente, 800 famílias quilombolas residentes na área.

Paralelamente, há liberação de um número recorde de agrotóxicos, como nunca antes na história desse País. Desde o início do ano até o dia 3 de outubro, foram liberados os registros de 382 agrotóxicos, segundo levantamento feito pelo site G1.

Tal política de envenenamento da população é fortalecida pelo avanço do Projeto de Lei nº 6.299/2002, de autoria do ex-senador Blairo Maggi (PP). Conhecido como “Pacote do Veneno”, o projeto pronto para ser apreciado pelo Plenário da Câmara, altera e flexibiliza, em profundidade, a legislação para plantio, comercialização e fiscalização dos agrotóxicos. Pesquisa realizada pela ONG suíça Public Eye em parceria com a Campanha Permanente Contra os Agrotóxicos e pela Vida aponta que 70% dos agrotóxicos no Brasil são considerados “altamente perigosos”.

Mais uma iniciativa no Legislativo é a Proposta de Emenda à Constituição (PEC) nº 80, de 2019, de autoria do Senador Flavio Bolsonaro, do PSL, assinado por mais de 26 senadores, cujo objetivo é alterar os artigos 182 e 186 da Constituição Federal de 1988.

Na justificativa, o Senador Bolsonaro defende a necessidade de “precisão de requisitos ao cumprimento da função social da propriedade”. Ele alega que a função social da propriedade “mostra-se como um limitante ao direito (de propriedade)”. Por isso, a intenção da PEC 80/2019 seria “diminuir a discricionariedade do Poder Público na avaliação de desapropriação da propriedade privada, tendo em vista que é um vem sagrado e deve ser protegida de injustiças” e que, e síntese, pretende-se contribuir para “evitar a recorrência e a perpetuação de injustiças, aprimorando a arcabouço protetivo do direito fundamental à propriedade”.

No Brasil e fora dele, especialmente na região amazônica, altamente impactada pelas ações do chamado desenvolvimento e pelos objetos das ações legislativas encampadas pelo Parlamento brasileiro, povos indígenas e povos e comunidades tradicionais vêm se contrapondo a essas agendas devastadoras. De um lado, agentes privados e principalmente o Estado operam em prol do poder, lucro e desterritorialização de povos indígenas e povos e comunidades tradicionais. De outro, estes grupos étnicos coletivos vivem em prol da natureza, dos territórios, das águas e do alimento saudável, colocando-se, portanto, na linha de frente anti-racista, anti-machista, anti-capitalista, ecológica, descolonial e pró bem viver.

*Ciro Brito é advogado popular da Terra de Direitos. Este artigo é baseado em sua fala durante a audiência pública "Direitos Humanos, Territoriais e Povos Tradicionais", promovida pela Comissão de Direitos Humanos da Assembleia Legislativa de Minas Gerais na cidade de Montes Claros (MG), no dia 27 de setembro de 2019.



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Ações: Conflitos Fundiários,Quilombolas
Eixos: Terra, território e justiça espacial
Tags: Ciro Brito,Povos indígenas,Sínodo da Amazônia,PCTs,Comunidades tradicionais