Parceiros da desapropriação: a MP 700 e a invenção da utilidade público-privada
A Medida Provisória 700/2015 representa mais um retrocesso na luta pelos direitos das comunidades atingidas por desapropriações, na medida em que, entre outras armadilhas jurídicas, autoriza o ingresso de agentes públicos – e agora, também, privados – sem ordem judicial, inclusive compulsoriamente, nas áreas declaradas de utilidade pública. O artigo abaixo foi escrito por Thiago Hoshino e Júlia Franzoni, associado e conselheira da Terra de Direitos.
Parceiros da desapropriação: a MP 700 e a invenção da utilidade público-privada
Às vésperas do último natal, um presente de grego: a Medida Provisória 700/2015, que, ao alterar as regras sobre desapropriação, fortalece a ação dos agentes de mercado e fragiliza as comunidades desapropriadas. Sob o mote da celeridade e da desburocratização, as inovações jurídicas em curso podem representar um verdadeiro cavalo de troia para a agenda urbana brasileira e para a luta pelo direito à cidade.
Explique-se. Para que a União, os estados, o Distrito Federal ou os municípios desapropriem um imóvel, a “utilidade pública” é uma das motivações exigidas por lei. Enquadram-se aí finalidades como abertura de vias, atendimento a situações de calamidade, realização de obras de infraestrutura, provisão de equipamentos, aproveitamento de recursos naturais, entre outras. Sendo a mais incisiva forma de intervenção estatal na propriedade privada (ao lado do confisco sem prévia indenização, em alguns casos), a desapropriação é estritamente regulada, a fim de prevenir arbitrariedades, excessos e desvios das autoridades públicas (eventualmente alinhadas com interesses particulares) no uso de suas prerrogativas de gestão. Até porque, convenhamos, “utilidade pública” e “interesse público” são conceitos abertos e em permanente disputa, tanto sobre o que é efetivamente útil quanto sobre quem é o seu real público-alvo.
Essa zona de nebulosidade tornou-se ainda mais cinzenta com a edição da MP 700/2015. Assinada pela presidenta Dilma Rousseff e por quatro ministros, esta MP altera o Decreto-Lei 3.365/1941 que, até então, regulava o procedimento da desapropriação. Muitas das mudanças que traz são merecedoras de atenção e cautela, inaugurando quase uma nova modalidade de desapropriação, uma espécie de desapropriação por “utilidade público-privada”.
Mais poderes para os agentes de mercado
Antes de mais nada, deixemos que a exposição de motivos da norma fale por si:
Contratos por desempenho, parcerias público-privadas, propostas de manifestação de interesse, contratações integradas, entre outras, são parte de um arsenal para dotar os gestores de instrumentos que garantam maior celeridade, segurança nas contratações e transferência dos riscos, atendendo desta forma o interesse público, aumentando a competitividade da economia e reduzindo os custos da logística nacional. […] A atualização desse marco legal aos novos modelos de execução de obras, possibilitandoa inclusão de concessionários, autorizatários e contratados na condução do processo de desapropriação, vai ao encontro da nova formatação de contratos públicos garantindo maior celeridade e segurança aos processos.
O texto não deixa dúvidas sobre a intenção de ampliar o campo de ação dos agentes dos mercados urbanos de imóveis, de serviços e de construção civil, permitindo que assumam a “condução dos processos de desapropriação” em prol da “competitividade da economia”. Mas, longe de apresentar apenas vantagens, há inúmeros riscos em fortalecer os mecanismos de parceria público-privada na gestão do território.
Não é de hoje que a chamada “fase executória” da desapropriação (que se segue à declaração de utilidade pública ou de interesse social de um imóvel pelo Estado) pode ser assumida por empresas contratadas ou concessionárias. Esta previsão já constava da Lei de Concessões (Lei 8.987/1995), o que não faz dela menos problemática, pois muitos decretos de utilidade pública são excessivamente genéricos, não discriminando o tempo e o modo exatos como cada parcela da área afetada será transferida e, na prática, delegando a administração desses imóveis aos “parceiros privados”, como bem entendam. Ocorre que, ao terceirizar a operacionalização das desapropriações, o Estado também pretende se eximir da gestão dos conflitos fundiários que, não raro, eclodem entre os envolvidos. Vale lembrar, no entanto, que empresas e concessionárias privadas funcionam segundo a lógica da maximização dos lucros e não, necessariamente, da concretização de direitos, o que, nestes casos, enseja, em si, uma contradição.
Com a MP 700/2015 o cenário tende a se agravar. Na desapropriação por zona – aquela que atinge não apenas a área de utilidade pública direta, mas também seu entorno –, passa-se a admitir que “a receita decorrente da revenda ou da utilização imobiliária integre projeto associado por conta e risco do contratado”, no bojo de planos de urbanização, renovação urbana ou reparcelamento do solo (art. 4º, parágrafo único). Ou seja, a valorização dos terrenos lindeiros (que era, até então, parcialmente capturada pelo Estado como forma de custear e ressarcir a infraestrutura implantada) poderá ser livremente explorada pelo privado. E os próprios bens desapropriados poderão ser empregados como “integralização de fundos de investimento ou sociedades de propósito específico” (art. 5º, §4º), figuras das quais se têm valido diversas operações urbanas consorciadas e parcerias público-privadas, com resultados, no mínimo, duvidosos, como a gentrificação. Aprofundar esse tipo de dinâmica perversa é um dos perigos iminentes da nova MP.
A distorção fica evidente, ainda, na nova redação do art. 5º, §6º, II, do Decreto 3365/41, que prevê a alienação para “qualquer interessado” dos imóveis objeto da desapropriação, quando houver posterior “perda objetiva do interesse público”. Ora, esse tipo de mudança de regra, no meio do jogo, era considerado, até hoje, um desvio de finalidade denominado “tredestinação”. Trata-se de atentado aos princípios da publicidade, moralidade e impessoalidade na administração pública. Mas, agora, sendo franqueado pela lei, serão parcos os mecanismos de controle sobre o destino dos terrenos, passíveis de serem relançados no mercado, com uma injusta distribuição dos ônus e benefícios desse processo, e potencial enriquecimento sem legítima causa dos parceiros privados da desapropriação. Mesmo a obrigatoriedade de que tais intervenções constem previamente do Plano Diretor não é garantia suficiente, visto que os planos diretores têm se mostrado, via de regra, pouco detalhados, quando não autoritários em sua confecção.
Na prática, o novo marco legal pode dar margem a ardilosas transferências imobiliárias do patrimônio de qualquer cidadão (proprietário ou posseiro) para as mãos de agentes privados das PPPs ou de outro “qualquer interessado” futuro, por uma intermediação estatal supostamente fundada na supremacia do interesse público. Quando atores de mercado puderem se apropriar, nestes moldes, da terra urbana e de sua mais-valia, toda a sociedade estará patrocinando a especulação, na contramão do que apregoam a Constituição Federal e o Estatuto da Cidade sobre a função social da propriedade urbana.
Menos direitos para as comunidades impactadas
Se exemplos não faltam de captura do “parceiro público” pelos “parceiros privados”, quem dirá de assimetria na relação entre as empresas concessionárias e as comunidades atingidas pela desapropriação.
A MP 700/2015 aumenta este abismo, na medida em que autoriza o ingresso de agentes públicos – e agora, também, privados – sem ordem judicial, inclusive compulsoriamente, nas áreas declaradas de utilidade pública:
Art. 7º Declarada a utilidade pública, ficam as autoridades administrativas do expropriante ou seus representantes autorizados a ingressar nas áreas compreendidas na declaração, inclusive para realizar inspeções e levantamentos de campo, podendo recorrer, em caso de resistência, ao auxílio de força policial.
Quem serão esses “representantes autorizados” de que fala a lei? Particulares dotados de poderes extraordinários e escoltados pela polícia? Terão carta branca para adentrar e inspecionar até o interior das casas numa ocupação? Tais práticas podem promover um reinado de terrorismo de Estado nas comunidades sob desapropriação, absolutamente incompatível com a inviolabilidade do domicílio prevista pela Carta Magna (art. 5o, XI). Tamanha violência tampouco se justifica pelo argumento da “celeridade” do processo, uma vez que o Poder Público já se pode valer da imissão provisória na posse (direito preliminar de adentrar e utilizar o imóvel), tão logo ajuizada a ação expropriatória e depositado o valor estimado do imóvel (art. 15, §1o).
Até a inclusão do art. 4o-A no Decreto-Lei 3.365/41, que visava proteger o direito à moradia em assentamentos de interesse social a serem desapropriados, deixou muito a desejar. Em primeiro lugar, porque restringiu as “medidas compensatórias” aos casos em que “a área esteja ocupada, de forma mansa e pacífica, há, pelo menos, 5 (cinco) anos”, conforme previsto na Lei 11.977/2009 (inciso VII, do art. 47), ou se situe em Zona Especial de Interesse Social (Zeis). Assim, criam-se critérios de seletividade e segregação de situações. Somente as comunidades de posse consolidada ou oficialmente demarcadas serão atendidas?
Ademais, não resta claro quem decidirá entre as opções de medidas compensatórias e quem arcará com elas – a família, o poder público, o “parceiro privado”? As possibilidades vão da realocação à “compensação financeira suficiente para assegurar o restabelecimento da família em outro local”, passando pela “indenização de benfeitorias”. Aqui, igualmente, surgem várias dúvidas:
i. Qual a legitimidade de remover comunidades, quando a diretriz legal é priorizar a regularização fundiária? Qual o momento do reassentamento, quando o termo “prévio” não consta expressamente?
ii. E qual a qualidade desse reassentamento, quando são notórias as críticas aos programas habitacionais existentes e, sobretudo, à precariedade de inserção urbana dos empreendimentos? Vale lembrar que o deslocamento para “outro local” não pode ser entendido como qualquer ponto da cidade, e sim como uma região minimamente equivalente em termos de acesso à infraestrutura, a oportunidades e a serviços, conforme os ditames dos Comentários Gerais 04 e 07 do Conselho de Direitos Humanos da ONU sobre direito à moradia adequada.
iii. Por sua vez, a indenização pelas benfeitorias, tão somente, significa um retrocesso em vista da jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça – STJ (que vem reconhecendo o pagamento de percentual da indenização pelo terreno aos possuidores) e das matrizes disponíveis de avaliação de impactos econômicos (como a da agência ONU-Habitat). Além disso, nas hipóteses de posse mansa e pacífica após um período de 5 anos, não caberia aplicar o instituto da usucapião especial urbana para endossar o domínio das comunidades sobre os imóveis, o que repercutiria em pagamento de indenização integral?
Sob outros ângulos, é verdade que a MP 700/2015 parece ter trazido alguns aspectos positivos, como a supressão dos juros compensatórios, que, ao fim e ao cabo das ações judiciais, constituíam um “prêmio” aos proprietários que descumprem a função social. Ocorre que, para os imóveis urbanos, o Estatuto da Cidade (art. 8º, §2º, II) já previa que o valor real da indenização, na desapropriação-sanção, “não computará expectativas de ganhos, lucros cessantes e juros compensatórios”. Todavia, esta atualização bem-vinda para a pauta da reforma agrária já teve, em janeiro, sua constitucionalidade questionada no STF pelo Partido Solidariedade (PS).
Judicializações à parte, vale lembrar que a medida provisória passa, nesse momento, pelo crivo do poder Legislativo para sua eventual conversão em lei. O texto já recebeu cerca de 70 propostas de emenda, podendo a sociedade civil também apresentar sugestões de modificação, inserção e exclusão. Quanto mais nos aproximamos do prazo-limite para votação (18/03/2016), mais crucial se faz o engajamento popular nesse processo de disputa pelo direito à cidade. Caso contrário, em um contexto macro de empresariamento e mercantilização do urbano, a encomenda da “utilidade público-privada” pode custar mais caro do que qualquer indenização alcançará pagar.
Júlia Ávila Franzone é Doutoranda em Direito pela Universidade Federal de Minas Gerais – UFMG. Professora universitária e pesquisadora do Grupo de Pesquisa INDISCIPLINAR, sediado na Escola de Arquitetura da UFMG.
Thiago Hoshino é Mestre em Direito do Estado pela Universidade Federal do Paraná. Professor universitário, pesquisador do INCT Observatório das Metrópoles e do Núcleo de Estudos em Direito Administrativo, Urbanístico, Ambiental e do Desenvolvimento (NEDAUD – PPGD/UFPR).
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