A resistência da agroecologia no país campeão no uso de agrotóxicos
Via Comitê Brasileiro de Defensoras e Defensores de Direitos Humanos.
Enquanto no Brasil, milhares de agricultoras e agricultores apostam cada vez mais na produção sustentável de alimentos, por meio de técnicas agroecológicas e que garantam comida saudável na mesa da população, o Congresso Nacional, na contramão dessas experiências, aprovou recentemente uma proposta que contraria essa lógica.
O Projeto de Lei nº 6.299/02 que facilita o uso de agrotóxicos no Brasil, permitindo, inclusive, que produtos já proibidos pela legislação vigente – por conterem substâncias cancerígenas, dentre outros problemas – possam ser revistos. O Brasil é considerado como o campeão no uso de agrotóxicos, segundo dossiê da Associação Brasileira de Saúde Coletiva (ABRASCO) em conjunto com o Ministério da Saúde, publicado em 2015. O documento aponta que 64% dos alimentos no Brasil são contaminados por agrotóxicos, causando mais de 34 milhões de intoxicações notificadas ao Sistema Único de Saúde (SUS) entre 2007 e 2014, e gerando um faturamento de R$ 12 bilhões à indústria de agrotóxicos em 2014.
Além dos riscos ao meio ambiente e à saúde da população, a ganância de quem depende dessa indústria é uma das causadoras da violência contra produtores/as agroecológicos. Madeireiros e grileiros que vivem da exploração ilegal da floresta, sentem-se intimidados pela aposta dos pequenos agricultores e agricultoras na produção e manejo do solo de forma sustentável. No cadastro nacional da Coordenação de Agroecologia e Produção Orgânica do Ministério da Agricultura Pecuária e Abastecimento (MAPA), até 2017, eram mais de 14 mil unidades de produção orgânica espalhadas por todas as regiões do país. E esse número é ainda maior se contarmos os/as agricultores/as que vivem dessa produção e não integram esse cadastro.
Osvalinda Maria é uma entre tantas mulheres que estão ameaçadas no Brasil por defenderem direitos fundamentais e trabalharem com projetos que apostam na preservação da floresta. No lote onde vive com o companheiro, Daniel Alves, no assentamento Areia -município de Trairão (Pará) – o manejo sustentável do solo está em cada hectare plantado. Laranja, pupunha, cupuaçu, cacau, cajá, acerola, abacate, limão, carambola, batata doce, arroz, feijão, macaxeira, milho e amendoim, são algumas das culturas produzidas e comercializadas pelo casal de agricultores.
Por esse tipo de produção é que surgem a maioria das ameaças sofridas pelo casal, que está inserido no Programa de Proteção a Defensoras e Defensores de Direitos Humanos (PPDDH) desde 2014. A ameaça mais recente ocorreu no dia 20 de maio desse ano, quando encontraram duas covas com uma cruz em cada, cavadas dentro do terreno onde vivem. As covas só foram desmanchadas no dia 15 de junho, quando, enfim, os peritos foram até o local para periciá-las, como parte da investigação que apura os responsáveis por essa intimidação.
Na região do assentamento Areia, localizado no município do Trairão (PA), os conflitos e ameaças aos agricultores e agricultoras são comuns. Além da produção agroecológica, o casal também auxilia nas ações da Associação das Mulheres do Areia II (AMAII). Uma Associação que investe na formação e qualificação de mulheres e garantindo autonomia para essas mulheres, o que para muitas também significa estar longe do trabalho para os madeireiros.
“Para comercializar nossa produção e garantir nosso sustento, fazemos as entregas na região de moto, mas com as ameaças, as pessoas que compravam da gente pararam de comprar. Perdemos muita coisa porque também não temos estrutura para armazenar tudo que produzimos. No último mês, perdemos mais de mil quilos de polpa de frutas que não conseguimos vender. É arriscado sair com a moto depois das ameaças, fica pesado colocar duas caixas nela. Se acontece alguma coisa, fica difícil da gente correr”, explica Osvalinda.
As ameaças e dificuldades impostas à Osvalinda, por esse trabalho, fazem parte do cotidiano de muitas mulheres que estiveram em sua casa, em junho desse ano, durante uma Missão de solidariedade proposta por organizações e movimentos sociais. Agricultoras e trabalhadoras rurais do sudoeste do Pará foram dizer que ela não está sozinha, que é necessário resistir por um futuro onde haja mais comida saudável na mesa dos brasileiros/as, respeito ao meio ambiente, e sem violência contra defensoras e defensores de direitos humanos.
Ameaças contra mulheres defensoras são frequentes
Alessandra Korap Mundukuru, mulher indígena e presidente da Associação Pariri, teve contato com as técnicas da agroecologia há pouco mais de três anos. “É uma experiência muito positiva, tudo da planta a gente usa. Esse ano, no 4º Encontro Nacional de Agroecologia (realizado em Minas Gerais) descobri muitas coisas. Das folhas a gente faz sabonete, da raiz faz sabão. Vi que isso também fortalece as mulheres e as nossas famílias”. Alessandra, que vive no território Mundukuru, Reserva Aldeia Praia do índio em Itaituba (PA), levou várias mudas da produção de Osvalinda e Daniel que serão plantadas na sua comunidade.
Na reserva vivem aproximadamente 40 famílias Mundukurus. “No dia que soube da ameaça fiquei muito triste, pois também temos guerreiras do povo Munduruku ameaçadas. Viemos aqui mostrar que eles não estão sozinhos”, diz a liderança.
No almoço, servido para as agricultoras e agricultores que foram prestar solidariedade ao casal, tudo preparado era dessa produção. A agroecologia não se resume ao cultivo saudável, mas também à técnicas de fortalecimento dos povos do campo e de seu modo de vida, alimentação diversificada, preservação do solo contra a desertificação, além de autonomia diante do mercado.
“O grande desafio está em superar as intimidações. É bater de frente com o agronegócio que quer acabar com os pequenos. Nosso desafio é mostrar que existe produção sem agrotóxicos e que nossos produtos são saudáveis. É muito desafiador falar de agroecologia na casa das pessoas que têm medo das ameaças dos grandes produtores”, diz Selma Ferreira, integrante da Associação de Mulheres Trabalhadoras Rurais do Município de Belterra (Amabela) e do Fundo Autônomo de Mulheres Rurais da Amazônia Luzia Dorothy do Espírito Santo. O Fundo, criado em 2014, é voltado ao fortalecimento de projetos coletivos de mulheres da região do Baixo Amazonas. “Quando eu soube da ameaça foi um impacto muito grande porque nós trabalhamos com agroecologia e sabemos da importância do nosso trabalho para a autonomia e fortalecimento das mulheres”, conta a agricultora.
Floriene Colares Vaz, do Grupo de Consciência Indígena (GCI) de Santarém, e também do Fundo Autônomo de Mulheres Rurais da Amazônia Luzia Dorothy do Espírito Santo, é mais uma das mulheres que participou da visita à Osvalinda e Daniel. Ela conta que na região do baixo Tapajós, onde o GCI atua no acompanhamento de comunidades indígenas, também são constantes os relatos de intimidação. “Quando li sobre a ameaça contra a Osvalinda e o Daniel eu pensei nas ameaças que muitas das mulheres que vivem no baixo tapajós enfrentam, e na gravidade deles construírem covas, parece que querendo mostrar o que vão fazer daqui pra frente”, diz Floriene. Ela conta que em meados de 2000 também sofreu ameaças por parte de fazendeiros da região do Arapiuns pelo seu trabalho junto às comunidades indígenas.
A pesquisadora e mestre em ciências ambientais, Ítala Rodrigues Nepomuceno, tem como área de pesquisa conflitos sócio ambientais. “Meu trabalho se baseia em entender como diferentes maneiras de se apropriar da floresta entraram em conflito. Convivi com trabalhadoras e trabalhadores que buscam garantir a preservação dos seus territórios e que passaram a sofrer represálias de gente que explora essas áreas dentro dos assentamentos. Madeireiros, grileiros, garimpeiros. Alguns, inclusive, tiveram de abandonar seu território. A gente vem aqui prestar nosso apoio para essas pessoas que estão na linha de frente de lutas tão nobres”, conta a pesquisadora. O sudoeste do Pará, onde vivem Osvalinda e Daniel no assentamento Areia, é uma região de forte atuação do agronegócio e onde frequentemente são registrados conflitos. Por outro lado, o Programa de Proteção aos Defensores e Defensoras de Direitos Humanos (PPDDH) não consegue adotar medidas efetivas de proteção aos defensores e defensoras ameaçados/as.
No Sindicato dos Trabalhadores na Agricultura Familiar (SINTRAF) de Itaituba (PA), desde 2009, Ana Cleide da Silva lembra que ao saber da ameaça também se sentiu ameaçada. “Eu sei que as ameaças que chegam para eles são porque eles trabalham nesse cultivo agroecológico, e incentivam outros agricultores a seguirem na mesma produção”. Domingas Rufina, moradora do assentamento Areia e que já presidiu a AMA II, é amiga de Osvalinda e acumula histórias de ameaças sofridas na comunidade. Ela demonstra preocupação com a segurança do casal de amigos, principalmente depois da última ameça.
“É muito importante trabalhar com a agricultura, tem muita coisa que a gente não compra porque plantamos. Eu fico muito sentida pelo que está acontecendo com os meus amigos. Vejo eles aqui sozinhos e penso que se alguém entra aqui, a gente vai saber bem depois”, diz Domingas.
Pedido de proteção
Após as denúncias referentes às últimas ameaças ao casal, o Comitê Brasileiro de Defensoras e Defensores de Direitos Humanos (CBDDH), rede composta por mais de 35 organizações do campo e da cidade, encaminharam um ofício ao PPDDH solicitando medidas efetivas de proteção ao casal. Além disso, acertaram uma visita do Procurador geral da região de Itaituba (PA), Paulo de Tarso Oliveira aos agricultores da região que ocorreu no mês de junho. Participaram da Missão representantes da Associação Pariri, do Movimento dos Atingidos por Barragens (MAB), da Terra de Direitos, da Comissão Pastoral da Terra (CPT), da Associação de Mulheres Trabalhadoras Rurais do Município de Belterra (Amabela), do Grupo Consciência Indígena (GCI), e do Sindicato dos Trabalhadores na Agricultura Familiar (Sintraf).
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