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Cinema de resistência: documentário sobre apanhadoras de flores relata lutas para defesa dos territórios


Lançado durante 2º Festival das Apanhadoras, em Diamantina (MG), registro denuncia avanço de monoculturas e impedimento da panha das flores 

Foto: José Odeveza

Sob olhares atentos à tela, o documentário "Serra Nossa, Sempre viva: protocolos de consulta das apanhadoras de flores" foi lançado no primeiro dia (14/09) do 2º Festival das Comunidades Apanhadoras de Flores Sempre-Vivas, em Diamantina-MG. A partir do relato das e dos apanhadores, o filme conta a relação das comunidades com a Serra do Espinhaço, a construção dos protocolos de consulta prévia, livre e informada e suas lutas frente aos desafios pela permanência e proteção dos territórios tradicionais. Com a presença de cerca de 250 pessoas, o Mercado Velho do Centro Histórico da cidade, ponto de encontro dos comerciantes, se tornou uma verdadeira sala de cinema, cheia de memória, resistência, emoção e auto-identificação. As comunidades se viam na tela.

“Nossas comunidades sempre viveram na invisibilidade. Produzir um documentário que conta um pouco da história e da luta de um povo é dar visibilidade a ele, e visibilidade é a garantia da continuação do seu modo de vida tradicional", relata Tatinha Alves, apanhadora de flores sempre-vivas e coordenadora técnica da Comissão em Defesa dos Direitos das Comunidades Extrativistas (Codecex), que realiza o festival.

Para a apanhadora de flores da comunidade quilombola apanhadora Mata dos Crioulos, Jovita Correia – que é retratada no documentário – é um momento de"muita alegria ver tantas conquistas feitas pelo nosso povo nestes últimos anos. Quando vi esse documentário eu lembrei de toda nossa história de força e labuta para garantir nossos direitos. Foi um trabalho muito emocionante". 

Os jovens que participaram da primeira exibição do documentário também se emocionaram com os depoimentos que o filme traz. Mariangela Alves da comunidade quilombola apanhadora do Vargem do Inhaí, que é uma das mais jovens que foram entrevistadas para o documentário, conta que é bonito ver as apanhadoras reunidas depois de tanto tempo em que as comunidades não podiam se aglomerar por conta da pandemia de Covid-19. 

"É um momento de reivindicação de direitos, é um momento de discussão e de se fazer estratégias de resistência, mas também é um momento de união e de celebração. O documentário conta um pedacinho da nossa história, e é lindo ver e ouvir pessoas que são exemplo da força de luta das apanhadoras de flores". 

    No documentário Mariangela conta em seu depoimento que não dá para cair no discurso de que somente ambientalistas protegem a Serra. A jovem de 25 anos traz uma importante fala sobre o discurso perverso de preservação que desconsidera a existência de povos tradicionais. Ela reforça que são os povos e comunidades que fizeram do seu modo de vida uma verdadeira relação de cuidado e conexão com a biodiversidade local. 

O documentário também registra a última Festa da Panha realizada pelas comunidades, em 2019, antes da pandemia. O festival comunitário era realizado todos os anos para celebração da colheita feita pelas apanhadoras e apanhadores. No ano em que o documentário captou esse momento, a festa teve um caráter ainda mais especial por ter sido o momento do lançamento dos protocolos de consulta das comunidades. 

A assessora jurídica da Terra de Direitos, Alessandra Jacoboviski, enfatiza que o documentário mostra como o trabalho coletivo é fundamental para a construção de um documento que diz como operam e devem ser consultadas as comunidades. A organização assessorou a elaboração dos protocolos de consulta, conjuntamente com a Codecex.

"É um trabalho coletivo feito por todas as comunidades. Nesse processo de construção dos protocolos de consulta às comunidades realizaram várias oficinas que registram seus modos de vida e práticas tradicionais, as riquezas do seu território e mais, nessas oficinas as comunidades puderam decidir como querem ser consultadas e como devem ser consultadas diante de qualquer intervenção direta ou indireta. A Terra de Direitos apoia as comunidades com a construção de protocolos de consulta justamente por entender a importância desses mecanismos para assegurar os direitos dos povos tradicionais a partir de um método totalmente coletivo", destaca a assessora jurídica. 

Ferramentas de luta

O cenário de deslegitimação e não garantia de direitos pelo Estado brasileiro aos povos e comunidades tradicionais também é realidade presente nas vidas das apanhadoras e apanhadores de flores  da Serra do Espinhaço. Das 7 comunidades que já possuem os protocolos de consulta, muitas têm tido que reivindicar na justiça a regularização fundiária dos seus territórios. Grilagem, mineração, estudos indevidos e políticas públicas não executadas são apenas alguns dos exemplos de violações de direitos dessas comunidades. 

Na perspectiva do Marcio Andrade, da equipe técnica da Codecex, um filme que "relata com riqueza de detalhes e materializa em imagens o modo de vida sustentável das apanhadoras e apanhadores de flores é uma importante ferramenta de memória e proteção do modo de vida sustentável que as comunidades exercem ao longo das gerações".

O representante do Ministério Público, o procurador da República, Helder Magno que estava presente na mesa de lançamento do documentário, enfatizou a importância da consulta prévia para povos e comunidades tradicionais. Em abril deste ano o estado de Minas Gerais divulgou uma Resolução Conjunta que regulamenta a consulta prévia no estado. 

 "Esse é um tema muito importante para as comunidades tradicionais e temos que discutir com profundidade. A Convenção 169 garante aos povos tradicionais que nada pode ser feito em relação aos povos e seus territórios sem consulta prévia. Nós estamos vivendo um momento em Minas Gerais que uma resolução tenta dizer como a consulta prévia deve ser realizada, e isso não tem valor jurídico algum".  

Na avaliação coletiva, de coletivos, organizações e povos tradicionais do estado a proposta de resolução foi construída sem participação popular e viola diretamente diversos aspectos da Convenção 169 da Organização Internacional do Trabalho (OIT), ao criar diretrizes de como a consulta deve ser realizada aos povos tradicionais, quando houver medidas públicas e privadas que impactem seus modos de vida e territórios. 

Em 2020, as comunidades apanhadoras de flores foram reconhecidas como o primeiro Patrimônio Agrícola Mundial do Brasil concedido pela Organização das Nações Unidas (ONU) a partir de sua agência que atua na temática de Alimentação e a Agricultura (FAO) denominado Sistemas Importantes do Patrimônio Agrícola Mundial (SIPAM). Este certificado reconhece os patrimônios agrícolas desenvolvidos por povos e comunidades tradicionais em diversas partes do mundo. 

Segundo o representante da FAO no Brasil, Rafael Savalla, que estava presente no Festival, esse reconhecimento traz consigo dois importantes aspectos "ele mostra o trabalho e os esforços das apanhadoras pelo preservação das flores, o trabalho sustentável com as espécies e também uma produção de artesanato que garante sustento ecológico para as famílias, além disso também faz com que a forma de trabalho das comunidades gera um consumo agrícola consciente de quem adquire os produtos das apanhadoras".  

O Filme

"Ainda tenho paixão" - a frase da apanhadora de flores Maria dos Reis Amorim, do Quilombo São João da Chapada, leva o público a emoção nos últimos minutos do documentário. A senhora que nasceu e cresceu vendo os campos de sempre-viva se emociona por não ter mais forças para continuar a prática que lhe traz tanta alegria. Ela relembra que subia a Serra para fazer a colheita sempre cantando e sorrindo. 

O Documentário é uma realização conjunta entre a Codecex e Terra de Direitos e possui 37 minutos. A produção aborda três pontos muito importantes para as comunidades apanhadoras de sempre-vivas: a relação delas com o território onde vivem e a Serra do Espinhaço; a luta pela regularização fundiária das comunidades, que estão sendo proibidas de praticar sua atividade tradicional e sustentável por causa da criação de Unidades de Conservação (UCs) no local e a construção dos Protocolos de Consulta Prévia, Livre e Informada, um direito previsto pela Convenção 169 da Organização Internacional do Trabalho (OIT), que visa garantir às comunidades tradicionais a consulta sobre qualquer modificação que afete suas vidas ou seu território.

Assista o filme na íntegra no canal do Youtube da Terra de Direitos: 
 




Eixos: Terra, território e justiça espacial