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De um lado, a soja. Do outro, a soja também

31/05/2020 Amigos da Terra Brasil

Acima do Tiningu e do Bom Jardim, chega-se à região de Curuaúna. De lá escorre veneno dos vastos campos de soja em direção aos quilombos e às águas do Rio Maicá.

Andando pela região, Francinaldo Miranda, do Sindicato dos Trabalhadores Rurais, Agricultores e Agricultoras Familiares de Santarém (STTR-STM), ensina a engenhosa arquitetura dos sojeiros, ou talvez a habilidade em design de ambientes – Esse é o puxadinho, que se resume a um pequeno avanço, não mais que dois ou três metros, do campo de soja em direção à mata em pé; queima-se aos poucos a floresta e, ano a ano, como se nada estivesse acontecendo, a soja toma todo o espaço disponível – como se precisasse crescer mais: pode se dizer, hoje, que no meio do campo de soja havia uma floresta (e havia uma floresta no meio do campo de soja) – E eles constroem esse muro pra que a visão da estrada seja bloqueada. Ninguém vê nada e parece estar tudo bem com a floresta. O muro em questão é uma fina faixa de árvores que, de fato, cumpre seu papel: é só ao dar a volta nela que se pode contemplar a imensidão da soja, soja a se perder de vista, de um lado, do outro lado, adiante e atrás. Porém, da estrada, é como se as árvores seguissem em pé, altivas.

Essa é uma das histórias da reportagem “História do cerco à Amazônia”. Navegue pelos conteúdos já publicados:

INTRODUÇÃO
Parte 1 (página central): A história do cerco à Amazônia
Parte 2: Quem é favorecido com as respostas de Bolsonaro às queimadas?

Parte 3: O “ganha-ganha” das empresas com a financeirização da natureza
Parte 4: Mas afinal, quem está por trás desses crimes?

HISTÓRIAS
1) O cerco explicado em um mapa
2) Um porto entalado na boca do rio
3) Antes do porto chegar (se chegar), chegaram já os impactos
4) Posto de saúde e escola quilombola: a luta muda a vida
5) [você está aqui] Curuaúna: de um lado, a soja; do outro, a soja também
6) O rosto estampado na camiseta

Os impactos na floresta e nas comunidades locais, obviamente, são tremendos: a soja representa grilagem, queimadas, desmatamento, agrotóxicos, além de necessitar de toda uma infraestrutura para seu transporte e exportação, o que também impacta os povos da região. Alguns casos, porém, beiram o absurdo: como a situação de uma pequena escola na comunidade de Boa Sorte (e o nome parece uma sádica ironia da vida). Ali, a distância entre a janela da sala de aula e o campo de soja não chega a dois metros, e o mais grave: o uso de agrotóxicos não respeita o horário escolar e se repete várias vezes ao ano. A contaminação das crianças é direta e repetida.

A região de Curuaúna é tão impactada pelo uso de agrotóxicos da soja (o principal é o glifosato – o Round-Up da Monsanto) que estudos com coleta de sangue de moradoras e moradores estão sendo realizados para dimensionar o tamanho do dano à saúde das pessoas. Os resultados dessa pesquisa ainda não foram divulgados. Outros estudos, entretanto, estão disponíveis: é o caso da dissertação de Nayara Luiz Pires, da Universidade de Brasília, que em 2015 pesquisou a expansão da fronteira agrícola na Amazônia e a contaminação por glifosato na região de Santarém. Nela, a pesquisadora afirma “um provável risco de exposição humana a agrotóxicos, principalmente pela via respiratória”.

Castanheira, árvore protegida por lei, sobrevive sozinha em meio a campo de soja. Foto: Carol Ferraz / Amigos da Terra Brasil

Escola cercada por soja: uso de veneno não respeita horário escolar e crianças são diretamente atingidas. Foto: Carol Ferraz / Amigos da Terra Brasil

Área queimada para a expansão do cultivo de soja: prática do “puxadinho” é muito usada na região amazônica, e consiste em aumentar o tamanho da terra aos poucos, queimando a floresta metro a metro, ano a ano, e avançando sempre à margem de qualquer tipo de controle. Foto: Carol Ferraz / Amigos da Terra Brasil

Com o avanço dos monocultivos na Amazônia, a floresta vira cinzas. Foto: Carol Ferraz / Amigos da Terra Brasil

Com o constante uso de agrotóxicos, pouca coisa cresce nas terras que antes eram bastante férteis. Foto: Carol Ferraz / Amigos da Terra Brasil

Fugindo da soja: cidades-fantasma e abandono
Muitas famílias, claro, não esperam para descobrir o quanto os agrotóxicos são danosos e a que velocidade estão os matando. Assim, as comunidades vão aos poucos sendo abandonadas, sumindo do mapa, deixando de existir – Ali era um campo de futebol– Ali tinha um monte de casas– Aqui era uma escola, mostra Francinaldo conforme se avança pela estrada que corta os campos de soja.

Mesmo as tradicionais partidas de futebol entre as comunidades vizinhas correm o risco de deixar de acontecer, simplesmente porque cidades-fantasma não têm times de futebol: ninguém mais poderá desafiar o temido São Jorge, equipe a ser batida na região. Francinaldo, natural da área de Curuaúna, era goleiro e conta quando – O centroavante tava a poucos metros de mim e era daqueles que chutava forte, meu amigo até, mas chutou com raiva, e a bola foi tão forte, mas tão forte, que rasgou a barriga de Francinaldo, e isso ele só descobriu mais tarde, depois do jogo, pois se arrastou com a bicicleta até em casa para não acusar a dor na frente do adversário. Precisou até de cirurgia e demorou anos a se recuperar plenamente. O mais importante, porém, conseguiu: defendeu o chute.

Isso que significa o avanço da soja: além da morte e da contaminação e da grilagem de terras, o fim da cultura e da vida local.

 

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A história do cerco à Amazônia


Leia também as partes 2, 3 e 4 da introdução:

Quem é favorecido com as respostas de Bolsonaro às queimadas?
O “ganha-ganha” das empresas com a financeirização da natureza
Mas afinal, quem está por trás desses crimes?

E as histórias:

1) O cerco explicado em um mapa
2) Um porto entalado na boca do rio
3) Antes do porto chegar (se chegar), chegaram já os impactos
4) Posto de saúde e escola quilombola: a luta muda a vida
5) [você está aqui] Curuaúna: de um lado, a soja; do outro, a soja também
6) O rosto estampado na camiseta

 



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Ações: Impactos de Megaprojetos, Conflitos Fundiários

Eixos: Terra, território e justiça espacial