Notícias / Notícias



"O mínimo é que não paguemos pelo direito de ir e vir na nossa cidade", afirmam comunidades sobre pedágio (PR)


Comunidades quilombolas destacam ausência de consulta prévia e impactos socioeconômicos pela cobrança de tarifa. Concessionária tem ignorado pedidos de isenção do pedágio

  Audiência pública na Câmara de Vereadores da Lapa reuniu representantes das comunidades quilombolas e demais comunidades. Via Araucária não compareceu. Foto: Lizely Borges

A cobrança de pedágio na BR-476, no trecho entre a Lapa e Contenda, no sudeste do Paraná, viola um conjunto de direitos de comunidades locais, especialmente quilombolas. Sob concessão da empresa Via Araucária há cerca de um ano, o pagamento da atual tarifa de R$ 12,30 é obrigatório aos moradores das comunidades que querem acessar o centro da cidade, denunciam comunidades em audiência realizada na Câmara de Vereadores do município, no dia 4 de outubro.  

Além do alto impacto à renda familiar das comunidades, a instalação e a cobrança do pedágio tornam-se ainda mais complexas ao considerar a localização da praça de pedágio e a ausência de oferta de serviços essenciais próximos às comunidades. Isso porque a procura de atendimento médico, escolar, demandas da prefeitura ou qualquer outra demanda não suprida pelo distrito exige o desembolso de, ao menos, R$ 24,60 para ida e retorno para os residentes em Mariental.  

Com cerca de 5 mil pessoas, o distrito de Mariental engloba as três comunidades quilombolas de Restinga, Feixo e Vila Esperança e demais comunidades, como Bom Sucesso, Caracol e Porteiras. No distrito não há creche e centro de referência de assistência social. A estrutura para atividades econômicas também é limitada, com apenas uma farmácia e poucos pequenos mercados. Não há bancos e pólo industrial na localidade. Sem hospital, a única Unidade de Pronto Atendimento (UPA) do distrito realiza apenas atendimentos de saúde básica. Com uma escola estadual e uma técnica, as demais demandas educacionais precisam ser supridas pelas regiões vizinhas. Para receber ou enviar carta, também é preciso pagar pedágio já que também não há unidade do correio. 

“Estamos separados por um muro invisível. São poucos mais de 10km que nos separa da cidade, mas temos que pagar 25 reais. Não é luxo, mas necessidade. A verdade é que ninguém escolheu isso. Não queremos ser tratados como visitantes na própria cidade. O mínimo que se espera é que esse povo não seja cobrado pelo direito de ir em vir em sua própria cidade”, destaca a moradora de Mariental, Cristiane Hammerschmidt.  

“Nestes mais de 500 anos a gente já foi limitado a tanta coisa, e mais uma vez estamos sendo limitados de ir e vir, estão parando a nossa passagem. Não conseguimos ir ao médico, ir à prefeitura, nem mesmo visitar uma amiga sem ter que pagar pedágio”, destaca a liderança quilombola da Restinga, Cláudia Ferreira. A referência às relações mais próximas tem um motivo. A praça de pedágio está instalada a apenas 2.6km da entrada da comunidade. Assim, qualquer deslocamento tem um preço adicional. “O pedágio nos limita a tudo”, diz. 

A liderança também faz referência a negação históricas de direitos. Desde a certificação pela Fundação Palmares, em 2006, não houve significativo avanço no processo de titulação do território da Restinga. Documento de reconhecimento formal pelo Estado brasileiro do direito ao território, o título também é porta de acesso para várias políticas públicas como de assistência rural. No entanto, mesmo sem o título a comunidade deve ser inclusa nas políticas agrícolas, educacionais, entre outras.  

“Quando uma praça de pedágio é colocada a apenas 2,6 quilômetros da entrada da comunidade da Restinga, isolando centenas de famílias quilombolas do acesso à cidade, não estamos diante de um erro técnico, estamos diante de uma violência racial e territorial. Essa violência impede o direito básico de ir e vir, mas também o direito ao trabalho, a educação, a saúde e a convivência”, enfatiza a deputada federal Carol Dartora (PT-PR). “A ausência de titulação abre espaço para violação de direitos, como ocorreu com a instalação ilegal do pedágio e com as obras da duplicação da BR-479”, complementa a parlamentar. 

Acionamento da justiça 
Em diferentes momentos a justiça foi acionada como meio de tentar garantir a livre circulação das comunidades da Lapa. Em 2023, em uma decisão liminar no julgamento de uma Ação Civil Pública (ACP) ajuizada pela Defensoria Pública da União, a juíza Silvia Brollo suspendeu o processo licitatório de concessão do pedágio com argumento de que a instalação do pedágio violou o direito de consulta prévia às comunidades quilombolas. 

 Assegurado na Convenção 169 da Organização Internacional do Trabalho (OIT), tratado ratificado pelo Brasil, este direito determina que povos tradicionais devem ser submetidos a consulta sobre qualquer medida que afete seus modos de vida. No entanto, a suspensão teve validade breve, e o Tribunal Federal da 4ª Região derrubou a liminar pouco tempo depois. O processo agora tramita na 11º Vara Federal de Curitiba/PR e a juíza sinalizou disposição em realizar uma audiência de conciliação entre as partes envolvidas. A audiência deve ser somada ao processo, apontam vereador Bruno Vux (PR), requerente da audiência. 

A Prefeitura da Lapa também ajuizou uma ACP para isenção de pedágio para moradores da Lapa, com argumento da violação do direito à cidade e de ir e vir dos lapeanos. A ação, no entanto, foi indeferida.  

Para participantes da audiência, é importante reconhecer que há decisões na justiça que garantiram isenção de tarifa à comunidades. Após decisão judicial em 2023, as comunidades caiçaras, quilombolas e povos indígenas de Angra dos Reis foram isentas de pagar tarifa em três pontos de cobrança da Rodovia Rio-Santos (BR-101). Há pouco mais de um mês o Supremo Tribunal Federal também determinou isenção de tarifa a moradores do Assentamento Jonas Pinheiro, em Sorriso (MT). O ministro Alexandre de Moraes afirmou, em sentença que, embora a cobrança de pedágio seja constitucional, ela não pode impor restrições não razoáveis ao direito de ir e vir de cidadãos. 

“O Estado não cumpriu com a Convenção 169 da OIT e com nossa constituição durante a concessão, por isso é dever do sistema de justiça garantir que os Direitos Quilombolas não sejam negociados em contrato privado do qual foram impossibilitados de participarem”, destaca a assessora jurídica da Terra de Direitos, Kathleen Tiê. A organização assessora a comunidade de Restinga na defesa de direitos territóriais e na mediação com a Via Araucária. 

Para o coordenador geral de mediação de conflitos do Ministério da Igualdade Racial, Rozembergue Batista Dias, a imposição de pedágio é uma “continuidade no processo de atropelamento a comunidades quilombolas”, aponta. Com relato de que ficou perplexo com a situação vistoriada na Lapa pelos Ministérios da Igualdade Racial e dos Direitos Humanos no dia anterior à audiência, o coordenador destaca que a cobrança de pedágio não pode ter como meta lucrar a partir dos moradores da cidade “É como se você fosse proibido de acessar a sua pátria. Diria que isso é indecente e até imoral e as empresas não estão desobrigadas das serem flexíveis e a terem bom senso”. 

Em tentativas de diálogo do Executivo local e Câmara de Vereadores, a empresa argumentou a impossibilidade de isenção da tarifa. De acordo com relatos em audiência a Via Araucária afirma que a isenção “não está prevista em contrato”. 

“O presidente da empresa disse para a gente passar a pé pelo pedágio quantas a gente quiser, não aceitamos essa fala. Queremos a passagem livre, não aceitamos menos do que a isenção”, reage Cláudia a ausência de disponibilidade da empresa para rever o contrato.  

Convidada para participar da audiência, a Via Araucária não esteve presente. “Isso mostra mais uma vez como a Via Araucária não conversa com a população”, destaca o vereador.  

Iniciativas legislativas 
Em fevereiro do ano passado o Executivo Municipal da Lapa sancionou a Lei Municipal 4.207/2024. A lei determina o pagamento, pela Prefeitura, do crédito mensal de dez tarifas de ida e 10 tarifas de retorno para as comunidades de Mariental. A medida está em fase de implementação, com entrega de tags [cartões] para os veículos cadastrados, cerca de 418, segundo a Prefeitura. Na prática a Lei devolve à Via Araucária parte do valor recebido da tributação do Imposto sobre Serviço (ISS) sobre o pedágio. 

Para as comunidades quilombolas e demais comunidades a lei é insuficiente, ainda que busque amenizar o impacto financeiro do pagamento do pedágio. Isto porque o número de créditos é insuficiente para moradores que realizam deslocamento diário. A norma também restringe o cadastro de um carro por família. Outra crítica é que não houve consulta aos povos e comunidades tradicionais sobre a lei de iniciativa do Executivo Municipal.  

Na audiência as comunidades reivindicaram aumento dos créditos e desconto progressivo na tarifa. Enquanto o usuário da praça de pedágio da praça de Porto Amazonas, também sob concessão da Via Araucária, paga R$ 1,04 na 30ª vez ao passar pelo pedágio, na praça da Lapa o valor cobrado é de R$6,22.  

Já na esfera federal o Projeto de Lei 1261/24 proíbe a instalação de praças de pedágio a menos de 12 km de distância das áreas onde vivam povos e comunidades tradicionais e de territórios tradicionais. De autoria da deputada federal Carol Dartora, a iniciativa legislativa está pronta para apreciação por comissões da Câmara dos Deputados.  

 



Ações: Quilombolas

Eixos: Terra, território e justiça espacial