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Prefeitura de Barcarena cerca 80% da área de um quilombo para criação de um parque


Após expulsar famílias do Quilombo Sítio Conceição há mais de 40 anos, prefeitura volta a promover nova violação de direitos em meio à pandemia.

Muro cortou território quilombola para criação do Parque Natural da cidade (fotos: Roberto Chipp)

O quilombola Roberto Chipp vê com desânimo o muro que agora cerca a comunidade onde nasceu e cresceu na cidade Barcarena, a 15km de Belém (PA). Com o muro, as famílias do Quilombo Sítio Conceição não podem mais chegar até o Rio Murucupi, que corta a comunidade, nem podem ir mais na floresta em busca ervas medicinais ou de frutos.

O cercamento da área é mais uma das violações de direito promovidas pela Prefeitura Municipal de Barcarena, que disputa a área com os quilombolas há mais de 40 anos. Em janeiro deste ano, a gestão municipal começou a cercar a área para a instalação do Parque Natural da cidade. As obras – agora finalizadas - continuaram mesmo em meio à pandemia de coronavírus, o que trouxe ainda mais ameaças aos quilombolas.

Os limites do Parque, no entanto, não apenas cercaram a área de floresta preservada dentro do quilombo como também avançaram sobre os quintais das casas. “A gente não pode ter acesso ao nosso próprio território”, lamenta Roberto.

Obras continuaram mesmo em meio à pandemia, expondo em risco os trabalhadores da Prefeitura e quilombolas.

Apesar de ainda não ser titulado, o Quilombo Sítio Conceição está em processo de titulação desde 2016, quando foi certificado como comunidade quilombola pela Fundação Cultural Palmares. Está prevista a titulação de 40hec do território.

Com o muro, a Prefeitura restringe o acesso das famílias à cerca de 80% do seu próprio território. Ou seja: se o quilombo fosse dividido em cinco partes, a Prefeitura teria se apossado de 4 dessas partes.

Violação de direitos

O caso foi denunciado aos Ministérios Públicos Federal (MPF) e estadual (MP-PA) pela Coordenação das Associações das Comunidades Remanescentes de Quilombo do Pará (Malungu) e pela Terra de Direitos, no início de maio. A situação também foi levada ao Conselho Nacional de Direitos Humanos (CNDH), em julho, em razão da continuidade das obras mesmo após as denúncias.

Coordenador da Malungu, Aurélio Borges vê o cercamento da área do quilombo como uma ação de má-fé da Prefeitura e, ao mesmo tempo, como resultado da inércia do Estado em garantir direitos quilombolas, como a titulação da área. Agora, a expectativa é de que a denúncia ao MP avance em uma ação judicial, e não apenas em uma recomendação. “Se a Prefeitura não respeita nem a Constituição, vai respeitar uma recomendação do MPF?”, indaga.

A obrigação do Estado em reconhecer e titular terras quilombolas é trazida na Constituição Federal, através do artigo 68 do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias (ADCT). Esse artigo foi regulamento no Decreto Federal 4887/2003, que aponta como se dá o processo de titulação dos territórios quilombolas, após reconhecimento da Fundação Cultural Palmares.

Questionada sobre a ação pelo blog ‘Ver-o-fato”, a Prefeitura de Barcarena informou em nota que “não invadiu nenhuma área quilombola”, pois o muro está sendo construído na área de preservação ambiental da cidade. “A ação foi como medida de proteção a área, devidamente autorizada pela justiça”, apontou a nota.

Advogada popular da Terra de Direitos que acompanha o caso, Vercilene Francisco Dias aponta que há irregularidades na ação da Prefeitura ao cercar e impedir acesso à uma área que conhecidamente passa por um processo de titulação. “Não há nenhuma lei que embase que municípios tem alguma autonomia sobre os territórios quilombolas, até porque a titulação dos territórios é de competência de órgão federal [Incra]”, explica. E aponta: “O município não pode fazer esse cercamento antes de haver uma decisão judicial reconhecendo que a terra é do município ou dos quilombolas”.

A construção do muro dentro do território quilombola não apenas fere normais nacionais como também internacionais, como a Convenção 169 da Organização Internacional do Trabalho. Esse tratado – que é ratificado pelo Brasil – reconhece a autonomia dos povos tradicionais em se autodeterminarem e reconhecerem seu território, e determina que esses povos sejam previamente consultados caso haja alguma medida, obra ou projeto que venha impactar os territórios tradicionais.

A Prefeitura não apenas deixou de consultar os quilombolas, como também assumiu o risco de infecção das famílias ao realizar uma obra dentro do território em plena pandemia de Covid-19.

Segundo Roberto, alguns casos suspeitos de Covid-19 foram registrados na comunidade, mas nenhum chegou a ser comprovado, pela falta de testagem. Nenhuma política de auxílio a quilombolas no combate à pandemia foi criada no município “Não recebemos nenhuma assistência da Prefeitura”, conta.

Luta antiga

Localizado em uma região agora urbana, o Quilombo Sítio Conceição é área estratégica visada para especulação imobiliária. Para Roberto, não é coincidência a pressão para redução – e até remoção dos quilombolas do local. “Não querem que a gente fique aqui por causa disso”, avalia.

Essa não é a primeira vez que o município tenta impedir o acesso dos quilombolas ao território tradicional. Eles já foram expropriados da terra na década de 1980, em um processo de urbanização conduzida pela extinta Companhia de Desenvolvimento de Barcarena (Codebar), em parceria com a Companhia de Desenvolvimento Industrial (CDI). Na época, as famílias foram coagidas a deixarem o local.

“A gente não tinha opção de escolha: ou aceitava a indenização, ou passavam por cima da nossa casa”. Com o conhecimento do direito ao território tradicional, as famílias voltaram ao local em 2008. Um ano depois, foram novamente despejados, mas retornaram em poucos meses, após acordo judicial. 

“Essa já é briga dos nossos antepassados, de quem já se foi. Eu estou dando continuidade à luta dos meus pais, que já morreram”, conta Roberto.

Cidade verde?

A tentativa da Prefeitura em cercar uma área verde – que está lá justamente pela presença dos quilombolas no local - para a criação de um parque urbano parece ser um fato curioso frente as práticas tão pouco sustentáveis movidas pela exploração da bauxita, na cidade.

Em fevereiro de 2018, o Rio Murucupi – que passa em meio ao Quilombo Sítio Conceição – foi totalmente contaminado com metais pesados (como chumbo, arsênio e mercúrio) após o transbordamento de um dos tanques de armazenamento de rejeitos da mineradora norueguesa Hydro Alunorte. Mais de 14 bairros e 30 mil famílias – inclusive as quilombolas – foram afetadas

Além disso, Roberto conta que o Rio também está contaminado por sistemas de esgotos, como o do bairro Vila dos Cabanos, que desagua no Murucupi.

Utilizar a água do Rio para o consumo, então, está totalmente fora de cogitação. Aliás, nem água de poço as comunidades quilombolas podem acessar – os rejeitos das mineradoras contaminaram inclusive o lençol freático da cidade. Água para beber só se for mineral ou se for do sistema de abastecimento da cidade, nos locais em que ele chega.

Tantos metais pesados presente nos rios e água da cidade já impactam a população: nos poucos exames que foram feitos nos quilombos da cidade, não são raros os casos de pessoas que apresentam presença elevada de chumbo no corpo, o que pode ocasionar problemas cognitivos, de hipertensão e problemas gestacionais.

“Tem que ter sangue de quilombola e indígena para suportar tanta coisa. Somos mesmo muito resistentes!”, garante Roberto. 

 



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Ações: Conflitos Fundiários, Quilombolas

Eixos: Terra, território e justiça espacial