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TJ ignora decisão de júri popular e anula julgamento que condenou ex-presidente da UDR pela morte de sem-terra


Marcos Prochet havia sido condenado há mais de 15 anos de prisão em 2016; outro júri popular, realizado em 2013, foi anulado um ano depois. Sebastião Camargo foi morto durante um despejo ilegal feito por uma milícia armada, no local de um pré-assentamento.

Um caso que se arrasta há 20 anos, o assassinato do agricultor sem-terra Sebastião Camargo ainda é marcado pela injustiça e falta de responsabilização do real culpado pelo crime. Nesta quinta-feira (29), o Tribunal de Justiça do Paraná anulou o júri popular que condenou, em 2016, o ex-presidente da União Democrática Ruralista (UDR), Marcos Menezes Prochet, a mais de 15 anos de prisão pelo assassinato de Camargo.

Por três votos, os desembargadores da 1ª Câmara Criminal desconsideram a decisão soberana dos jurados populares, que a partir dos depoimentos e provas apresentadas, consideraram que o ruralista foi o autor do crime.

O caso aconteceu em 1998, durante um despejo ilegal em um pré-assentamento na Fazenda Boa Sorte, na cidade de Marilena, Noroeste do Paraná. Na época, cerca de 30 pistoleiros e integrantes da UDR atacaram com tiros o acampamento do Movimento dos Trabalhadores Sem Terra, que ocupava a área que já havia sido declarada improdutiva e estava em processo de desapropriação pelo Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra), para a criação de um assentamento. Além do assassinato do agricultor, 17 pessoas ficaram feridas, inclusive crianças.

Sebastião Camargo deixou a esposa viúva e órfãos os cinco filhos, que querem a responsabilização dos culpados pela morte do pai. “É muito triste. O que ele fez teria que pagar na cadeia. Não tem justificativa, quanto tempo já faz isso.  E ele [Prochet]  sempre recorrendo, caindo fora”, lamenta Cezar Camargo, filho do agricultor assassinado.

Nas redes sociais, a família já havia manifestado indignação pela possibilidade da anulação do segundo julgamento que condenou o ex-presidente da UDR. “Se houvesse um jeito de anular o tiro que ele [Prochet] deu covardemente no senhor Sebastião Camargo, mas isso não tem volta. Ele já tirou o direito à vida de um pai de família e ainda vive em liberdade. Pelo menos carrega com ele o nome que de fato lhe cabe: assassino. Agora quer enterrar isso”, escreveu uma das noras do agricultor assassinado.

Essa foi a segunda vez que um júri que condendou Prochet foi anulado. Em 2014, o TJ também anulou um julgamento realizado em 2013. 

Soberania ferida

A decisão dos desembargadores de anular o julgamento colocou em xeque a votação dos jurados populares que, no entanto, deve ser soberana e respeitada. A anulação de um júri popular deve ocorrer apenas  em casos excepcionais, em situações em que os jurados optam por uma versão dos fatos sem qualquer prova nos autos, o que não acontece neste caso.

Os desembargadores acolheram parte do recurso movido pela defesa de Prochet, que alegava que a decisão dos jurados populares não era coerente com as provas apresentadas no processo.

No entanto, diferentes provas foram elemento suficientes para mostrar que a decisão dos jurados foi diretamente ligada ao caso que julgavam. Oito testemunhas viram Prochet no local do ataque ao acampamento - algumas delas também viram que o fazendeiro foi o autor do tiro que matou Sebastião Camargo. Em 2009, a Comissão Interamericana de Direitos Humanos também afirmou em um relatório que haviam provas suficientes para condenar Prochet

Os advogados da família do agricultor explicam que a decisão do TJ não julgou o recurso movido pela defesa do fazendeiro, mas o resultado do júri.  “A possibilidade de reversão do julgado exige que o corpo de sentença não tenha acolhido uma determina tese em plenário. A decisão do tribunal do júri entendeu que sim, há provas suficientes que comprovam que Marcos Prochet matou Sebastião Camargo”, apontam.

A família do agricultor vai recorrer da decisão, por considerar que ela não tem “qualquer fundamento” e a busca por justiça segue. A denúncia da decisão também será levada à Comissão Interamericana de Direitos Humanos (CIDH) e ao Conselho Nacional de Justiça, que acompanham o caso. 

Seletividade penal

Com essa decisão do TJ, a morte de Sebastião Camargo segue impune há mais de 20 anos. O caso é marcado por diferentes manobras jurídicas que atrasaram - e impediram - a condenação de Prochet.

Prochet havia sido condenado em 2016 a 15 anos e 9 meses de prisão.

A demora e procrastinação no julgamento do fazendeiro são bastante diferentes da situação vivenciada por outros sem-terra e outras pessoas em vulnerabilidade econômica. O catador de materiais recicláveis Rafael Braga foi preso no Rio de Janeiro em 2016, acusado de tráfico de drogas, e em 2017 foi condenado a onze anos e três meses de prisão. O jovem negro denunciou que foi vítima de uma armação policial.

A defesa de Prochet também alegou que o assassinato de Sebastião Camargo aconteceu em uma fazenda que não era de propriedade do ruralista. A operação da Polícia Federal batizada de Março Branco, no entanto, revelou a participação de integrantes da UDR de toda a região na formação de milícias para a realização de ataques armados ao MST. Em um momento onde diferentes membros do movimento social respondem processos a partir da Teoria de Domínio do Fato, a mesma tese não é aplicada quando o acusado é um fazendeiro. Essa teoria que diz que, por fazerem parte de um mesmo grupo, são responsáveis pela ação de outras pessoas do coletivo.

Além disso, o fato de a vítima ser integrante do MST parece ter pesado na decisão do TJ. Logo após a sustentação oral dos advogados, o desembargador Macedo Pacheco questionou a relação da vítima com o local do caso. Os advogados da família de Camargo responderam que o agricultor ocupava a área que estava em processo de desapropriação para a reforma agrária.  “Invasor”, foi o que respondeu outro desembargador presente.

Relator do caso, o desembargador Clayton Camargo também já demonstrou o preconceito contra os sem-terra em outras ocasiões. Em 2016, durante o julgamento de outro caso, chegou a declarar que os integrantes do MST são “bandidos, não assentados”.

O Estado brasileiro já chegou a ser condenado pela Comissão Interamericana de Direitos Humanos (CIDH) pela morte do agricultor. Em seu relatório publicado em 2009, a CIDH afirmou que “o Estado brasileiro não cumpriu sua obrigação de garantir o direito à vida de Sebastião Camargo Filho (…) ao não prevenir a morte da vítima (…) e ao deixar de investigar devidamente os fatos e sancionar os responsáveis”.

O documento também fez ao país uma série de recomendações para reparação – como a responsabilização dos culpados –, que não foram cumpridas. Pela inoperância do Estado, a Terra de Direitos voltou a denunciar o Brasil em maio deste ano, durante uma reunião de trabalho com a Relatora pelo Brasil da CIDH, Antonia Urrejola. Agora, a decisão do TJ também será denunciado à Comissão.

Um caso antigo

Marcos Prochet foi o quarto condenado pelo assassinato de Sebastião Camargo. O despejo foi realizado por cerca de 30 pistoleiros encapuzados que integravam uma milícia privada ligada à União Democrática Ruralista.

Proprietário do imóvel que estava sendo desapropriado para reforma agrária,  Teissin Tina recebeu condenação de seis anos de prisão por homicídio simples; o pistoleiro Osnir Sanches foi condenado a 13 anos de prisão por homicídio qualificado. Augusto Barbosa da Costa, integrante da milícia privada, também foi condenado

Em junho, uma decisão do Juízo da Vara Criminal da Comarca de Loanda  determinou que o ruralista Tarcísio Barbosa de Souza também deve ir à júri popular pelo assassinato de Sebastião Camargo. O ruralista apresentou recurso da decisão, que deverá ser apreciado pela 1ª Câmara Criminal do Tribunal de Justiça do Estado do Paraná.



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Casos Emblemáticos: Sebastião Camargo Filho
Eixos: Política e cultura dos direitos humanos