A nova face da grilagem de terras no Pará
Aianny Naiara Gomes Monteiro
Sob o argumento da desburocratização, a nova Lei de Terras do Pará, que dispõe sobre a regularização fundiária de ocupações rurais e não rurais em terras públicas do Pará, abre espaço para a legalização de grilagem de grandes áreas.
A Lei 8.878, de 8 de julho de 2019, foi sancionada pelo governo do estado do Pará mesmo após contestação da sociedade civil contra a aprovação do Projeto de Lei 129/2019. Organizações e movimentos contestaram a ausência de participação no processo de elaboração da lei e também as graves violações ao processo legislativo previsto na Constituição Federal e estadual. A aprovação da legislação em dois turnos realizados no mesmo dia também desrespeitou as regras do regimento interno da Assembleia Legislativa do Estado. A sociedade civil sugeriu vetos ao governo, que foram parcialmente atendidos, mas em geral não atingiram os pontos mais críticos do projeto.
Apesar de conter pontos positivos, como a consolidação de formas coletivas estaduais de acesso à terra, a nova lei segue a tendência de regularização individual de terras inaugurada pelo Programa Terra Legal e que foi acentuada pela nova lei federal de regularização fundiária 13.465/2017.
Além disso, a nova lei prioriza a valorização de títulos em desfavor da posse efetiva da terra, mesmo em áreas sem implantação de atividade agrária e acima do limite estadual para alienação de terras públicas, de 1.500 hectares. Atualmente tramita uma Proposta de Emenda Constitucional para alterar a Constituição do Estado do Pará e eliminar o limite estadual para aquisição de terras.
Além de prever regularizações de ocupações recentes, a lei resgata títulos de áreas com limites geográficos incertos, já declarados caducos pelas legislações anteriores, o que dificulta a localização dos imóveis, e dispensa licitação para adquirir terras públicas. Ainda prevê a regularização de títulos de terras que tiveram seus registros imobiliários cancelados pelo Conselho Nacional de Justiça (CNJ) em 2010, por não seguirem os trâmites adequados para ser considerados válidos.
O Pará tem um longo histórico de conflitos agrários, sendo um dos campeões em assassinatos de lideranças camponesas, sindicalistas, ambientalistas e de comunidades tradicionais. Um número significativo de pessoas ameaçadas incluídas no Programa Federal de Proteção aos Defensores e Defensoras de Direitos Humanos, que abarcam lideranças que lutam pelos direitos territoriais de suas comunidades e pela defesa do meio ambiente, são do estado.
Impactos da nova lei
As condições criadas pela Lei 8.878/2019 para regularização de terras públicas estaduais acenam para uma nova faceta de grilagem de terras no Estado. A antiga prática de envelhecer documentos para registro em cartórios de imóveis está obsoleta, pois a lei atual premiou ocupações recentes e possibilitou a alienação de grandes áreas a preços módicos para aqueles que sequer desenvolvem atividades agrárias ou mesmo que tenham adquirido áreas irregulares.
A lei, a pretexto de possibilitar o desenvolvimento local e a desburocratização dos procedimentos administrativos de regularização fundiária, premiou a especulação imobiliária. O resultado prático, além do aumento da violência no campo, será o aumento do desmatamento, a disponibilização dessas áreas no mercado de terras e a reconcentração de terras, estimulando práticas mais sofisticadas de grilagem com o respaldo do próprio Estado.
Pontos positivos da lei:
- Prevê formas coletivas de regularização fundiária: Assentamento Sustentável (AS), Assentamento Agroextrativista (EX) e Território Estadual Quilombola (TEQ).
- Regularização das áreas patrimoniais municipais. Estabelece que a regularização fundiária coletiva constitui política pública permanente do Estado do Pará, cujo objetivo é legalizar a permanência coletiva em áreas públicas estaduais.
- Doação de ocupação de terras públicas para agricultores familiares até o limite de 100 hectares.
- Garante a isenção de impostos estaduais na primeira transmissão da terra pública ao agricultor familiar beneficiário de doação individual ou regularização coletiva.
Pontos negativos da lei:
- Criação de conceito de legítimo ocupante de terra pública para quem não implantou qualquer atividade agrária no imóvel, mas que pode receber um título do estado pagando valores muito abaixo do mercado se indicar ter a pretensão de desenvolver atividade agrária, cuja regularização fica condicionada à apresentação de plano de desenvolvimento econômico sustentável ao Instituto de Terras do Pará (Iterpa).
- Criação do conceito de adquirente de boa-fé, incluindo pessoa jurídica, que tenha adquirido área pública acreditando ser privada, cujo direito de preferência na regularização da área é garantido mediante regime especial de compra direta, portanto, dispensada licitação.
- Regularização de áreas mediante compra direta com dispensa de licitação desde que se comprove, dentre outros requisitos, atividade agrária pelo prazo mínimo de cinco anos, a partir da ocupação consolidada, mansa e pacífica da área, com data anterior a cinco anos da publicação da lei e autorização de aproveitamento do tempo de ocupação anterior de terceiros na área de interesse.
- Autoriza a regularização de área com registro irregular em cartório de imóveis a partir do seu cancelamento pelo requerente da regularização, ou seja, permite a regularização de títulos de terra cancelados pelo CNJ em 2010, que não seguiram os trâmites adequados para ser considerados válidos.
- Reduz a impossibilidade de negociação da área rural de dez anos para o prazo de cinco anos a partir da entrega do título ao beneficiário, tanto em caso de alienação por compra como por doação, prevendo ainda possibilidade de regularização de outras áreas consideradas “necessárias à expansão e ao desenvolvimento das atividades agrárias”, conforme avaliação do Iterpa.
- Autoriza o estado do Pará a corrigir e confirmar títulos emitidos pelo estado que não cumpriram os requisitos legais como revalidação, com perímetros discrepantes e imprecisão de área e localização e que desobedeceram cláusulas de inalienabilidade ou condição resolutiva do plano de aproveitamento.
- Autoriza ao Iterpa dar continuidade aos pedidos de conversão de títulos de posse considerados caducos em 1996 pelo Decreto Estadual 1.054, em títulos definitivos;
- Estabelece mecanismo de convalidação de títulos expedidos com área acima do limite constitucional instituído pela Constituição do Estado do Pará com pendência de autorização pela Alepa.
* Aianny é advogada popular e integra a assessoria jurídica da Terra de Direitos.
:: Este artigo integra a publicação Tapajós: informes de uma terra em resistência - 2ª edição. Acesse aqui a publicação.
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