Acervo / Artigos



Quilombolas no STF: de que lado você samba?


STF retoma julgamento do Decreto Federal que garante o direito constitucional quilombola à terra, no próximo dia 16. Essa é a decisão mais importante para a luta quilombola desde a Constituição.

Dia 16 de agosto será a terceira vez que o direito constitucional quilombola à terra estará na pauta de julgamentos do Supremo Tribunal Federal. A primeira vez foi em 2012, com o voto do Ministro Cesar Peluso pela inconstitucionalidade do decreto. A segunda, em 2015, com o voto pela constitucionalidade da Ministra Rosa Weber. Agora, o julgamento retornará com o voto do Ministro Dias Tóffoli.

Não há previsão de finalização do julgamento, pois pode haver outro pedido de vistas que o interrompa, ou pode ser que todos os magistrados apresentem seus votos, formando a posição final do STF no tema.  Se há incertezas quanto à data em que o caso será definitivamente julgado, mais incerto ainda é seu resultado.

É possível dizer que não há registros na história brasileira de outras oportunidades em que a mais alta corte de justiça do país tenha debatido e julgado, de forma tão específica, o tema de acesso à terra para quilombola. O quase inédito julgamento parece não refletir a importância que esse tema tem para a história do Brasil, mas principalmente para a vida de tantas pessoas que lutaram para conquistar dignidade através da terra. Essa situação não decorre do acaso, pois esse fato tem conexão direta com o racismo, a concentração fundiária e o papel que o sistema de justiça brasileiro teve, e ainda tem, nas questões raciais e fundiárias brasileiras.

Antes da Constituição Federal de 1988 não havia no Brasil qualquer direito à terra formalmente reconhecido às comunidades quilombolas. E antes de tal data as conexões do direito com a questão da terra quilombola remontam à época da escravidão. Uma das mais conhecidas manifestações do direito que relaciona quilombolas e terra antes de 1988 talvez seja a definição do Conselho Ultramarino de Portugal, datada de 1740, que definiu quilombo como “toda habitação de negros fugidos, que passem de cinco, em parte despovoada, ainda que não tenham ranchos levantados e nem se achem pilões nele”. Ou seja, quando no passado do direito tratou da questão quilombola e de suas terras, o fez em prejuízo das comunidades, criminalizando-as.

Esse diagnóstico aponta para o quanto historicamente o direito, assim como o sistema de justiça, atuaram em desfavor das comunidades quilombolas, principalmente no que diz respeito a garantir a essa parcela da população direitos à terra. E a situação de agora, com o julgamento sobre a constitucionalidade do Decreto Federal nº 4887/03, não é muito diferente do que a história nos mostra.

Do julgamento que deverá ser retomado em agosto não se espera avanço significativo para as comunidades quilombolas, mas, no máximo, a manutenção do que já foi reconhecido na Constituição. Ou seja, uma vitória quilombola nesse julgamento apenas reforçará o que há trinta anos já conquistou-se no art. 68 do ADCT da Constituição. Contudo, se a decisão do STF for desfavorável aos quilombolas, haverá significativa perda de direitos, inclusive com a possibilidade de completa paralisação dos processos de titulação das terras quilombolas junto ao Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra).

Assim, é fundamental reconhecer que o debate sobre a questão da terra para comunidades quilombolas chegou ao Supremo Tribunal Federal como uma grave ameaça às negras conquistas históricas. Logo que foi publicado o Decreto Federa nº 4887/03, instrumento que tornava juridicamente possível de ser realizado o sonho quilombola de acesso á terra, as elites agrárias e políticas, através do antigo PFL, hoje DEM, trataram de usar do STF para tentar barrar os avanços negros. O objetivo da ação junto ao STF é claro: impedir que quilombolas tenham suas terras tituladas.

Diante desse contexto convém analisar a quem o STF servirá neste julgamento histórico para a questão negra quilombola. Para tentar responder a esse questionamento analisam-se três possíveis desfechos para o julgamento: a) possibilidade de declaração de inconstitucionalidade total do decreto; b) a possibilidade de declaração de constitucionalidade do decreto, sem alteração de seus conteúdos; c) e uma terceira possibilidade, em que o decreto teria sua constitucionalidade reconhecida, mas com a imposição de condicionantes, a exemplo do que ocorreu com o caso Raposa Serra do Sol no STF.

Se o STF declarar o decreto quilombola inconstitucional, na linha do entendimento do voto do Mininistro Cesar Peluso, é evidente que o Supremo Tribunal Federal estará agindo em nome dos interesses que, no Brasil, ainda reforçam a opressão racial e a concentração de terras. A declaração de inconstitucionalidade total do decreto quilombola inviabilizará, ao menos por um bom tempo, a titulação das terras.

Se tal fato ocorrer o STF sepultará uma conquista histórica das comunidades quilombolas, e tornará o art. 68 do ADCT da Constituição um direito vazio e sem conteúdo, que não pode ser aplicado porque lhe faltaria uma outra lei. E na questão negra quilombola sempre foi assim, sempre falta uma assinatura, um carimbo, uma autorização, uma burocracia qualquer que na verdade só serve para impedir que os negros e negras tenham acesso à terra. Uma decisão nesse sentido não se afastará muito daquelas decisões judiciais que, na época da escravidão oficializada, tratavam os quilombolas como propriedades dos Senhores de engenho brancos, proprietários e sexistas, o antigo estereótipo do “cidadão de bem”.
 


Caso a decisão do STF seja pela inconstitucionalidade do decreto será necessária a aprovação de uma lei no Congresso Nacional para a retomada das titulações. E com o atual cenário político no Congresso é de se esperar que tal lei não seja aprovada nunca, ou se chegar a ser aprovada poderá ter um conteúdo que prejudique muito o direito quilombola à terra.

Mas o STF não está obrigado, ao menos do ponto de vista formal, a julgar como historicamente o sistema de justiça julga os direitos de negros e negras. Na linha do que já fez, por exemplo, com a questão das cotas raciais, o STF pode declarar a constitucionalidade do decreto quilombola, reconhecendo que o direito inscrito na Constituição precisa e deve ser aplicado nos termos expressos no decreto.

Se assim o fizer, o STF fortalece a luta quilombola por terra dizendo a todos e todas que quilombolas têm esse direito, e que é dever do Estado assegurá-lo. Essa já é a mensagem que se pode extrair da própria Constituição, mas um reforço do STF ajudaria muito as comunidades quilombolas a cobrarem do Estado a realização concreta do direito. Além disso, uma decisão favorável do STF contribuiria de forma decisiva para assegurar a quilombolas um marco jurídico mais estável para a titulação de suas terras.

Mas há uma terceira possibilidade de resultado para esse julgamento, que seria a declaração de constitucionalidade com imposição de condicionantes, como ocorreu no caso da Raposa Serra do Sol, em que o STF impôs, como se fosse legislador, dezenove condições para realização do direito dos povos indígenas a suas terras ancestrais. E as condicionantes não tiveram o efeito de acelerar as demarcações, pois na prática dificultam muito a realização do direito indígena. Diante desse quadro cogita-se a possibilidade do STF apresentar condicionantes para a efetivação do direito à terra de quilombolas, situação que teria a possibilidade de prejudicar as comunidades.

Essa avaliação deriva de reflexões sobre a quase impossibilidade do STF apresentar alguma condicionante que contribua para o avanço das titulações de terras quilombolas. Isto, posto que ninguém aposta na possibilidade de, por exemplo, o STF determinar que o Estado brasileiro tenha um planejamento estratégico para dar respostas aos mais de mil e quinhentos processos de titulação de terras quilombolas em um prazo não superior a vinte anos. O que há de mais evidente quanto a inconstitucionalidade na questão da terra quilombola é a estimativa de que seriam necessários mais de seiscentos anos para a realização da titulação dos territórios de todas as comunidades que já pleitearam seus direitos junto ao INCRA.

Quanto às condicionantes é possível que o STF limite as possibilidades de titulação das terras quilombolas impondo o que se denominou chamar de “marco temporal”. Através de tal medida o STF poderia, por exemplo, afirmar que o Decreto Federal nº 4887/03 seria constitucional, mas que o Estado só poderia titular a exata porção de terras que cada comunidade dispunha em 1988, data da promulgação da Constituição.

Se o STF decidir dessa forma o direito constitucional quilombola à terra restará severamente prejudicado. É fundamental considerar que em função da estrutura agrária brasileira, baseada no racismo e na concentração fundiária, a grande maioria das comunidades quilombolas nunca tiveram acesso às terras necessárias à reprodução física, social e cultural, nem mesmo após 1988.          

Caso o STF impuser a condicionante do marco temporal é possível afirmar que estará congelando um momento histórico de opressão ao povo negro, de modo a querer torná-lo eterno para perpetuar um cenário de racismo que oprime o povo quilombola. Isso porque em 1988 grande parte das comunidades quilombolas estavam, como estão hoje, desprovidas das possibilidades reais de acessar livremente terras para sua manutenção com dignidade. Logo, assim decidindo o STF apenas confirmará o resultado de séculos de opressão racista aos quilombolas.

O objetivo do reconhecimento do direito constitucional quilombola à terra é justamente poder conferir a tais grupos da sociedade brasileira, em muitos casos pela primeira vez na história, condições dignas de acesso à terra. Neste julgamento não há meio termo: se o STF não reconhecer a constitucionalidade do que já está garantido no Decreto Federal nº 4887/03 continuará a reforçar o padrão histórico de opressão a negros e negras. O que se deve esperar de uma corte branca que julga o direito dos negros, contestado judicialmente pelas elites políticas e fundiárias que são hoje herdeiras do legado racista desta sociedade que ainda vive como se fosse uma colônia?

Vozes quilombolas 

Representante da Federação das Organizações Quilombolas de Santarém (FOQS) no Conselho Municipal de Saúde, Claudiana Souza Lírio falou à reportagem da série especial quilombola Na raça e na cor sobre autorreconhecimento, racismo, machismo, a organização das mulheres quilombolas de Santarém, impactos da não titulação e desafios e conquistas do movimento quilombola.

Participando do movimento desde os 7 anos, levada por seu pai, Claudiana lembra-se das marcas no corpo de seu tataravô, um homem que foi escravizado, em fotos de família. “Isso pra mim foi uma coisa que marcou muito minha vida, minha juventude”, conta. Assista: 

 



Notícias Relacionadas




Ações: Quilombolas
Eixos: Terra, território e justiça espacial