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Para barrar retrocessos, povos da Amazônia articulam estratégias de resistência

08/11/2019 Por Gisele Barbieri, da Terra de Direitos, e Hellen Joplin, especial para a FASE / Fotos: Franciele Petry Schramm

Em seminário realizado em Santarém entre os dias 5 a 7 de novembro, movimentos sociais e organizações reforçaram a necessidade de desenvolver articulações entre os diferentes povos da Amazônia para enfrentar ameaças.

A Amazônia brasileira ocupa 60% do território do nacional, que abrange os Estados do Amapá, Acre, Amazonas, Mato Grosso, Pará, Rondônia, Roraima e Tocantins. Apesar de ser aproximadamente 5.500.000 km2 de floresta, cada região se conecta e acha a sua forma de sobreviver nessa imensidão. Uma terra de muitas lutas e resistências, onde povos e comunidades tradicionais defendem de diversas formas seus territórios e sua história. Um lugar de riquezas que está em constante disputa por um modelo de desenvolvimento pautado por interesses econômicos, que, cada vez mais, despreza a preservação dos recursos naturais e dos territórios desses povos. 

A construção de portos, hidrelétricas e ferrovias, a liberação desenfreada de agrotóxicos, o desmatamento, os incentivos milionários aos setores do agronegócio, a paralisação da reforma agrária e o avanço da mineração contaminando rios e igarapés. Essas são apenas algumas das denúncias dos povos amazônicos, trazidas durante o seminário ‘Amazônia: territórios de lutas e resistências’, realizado em Santarém (PA)  entre os dias 5 a 7 de novembro. Assim como os rios Tapajós e Amazonas se encontram na cidade, cerca de 70 pessoas de seis estados se reuniram para somar experiências e unir estratégias de resistência e de denúncia desse modelo de desenvolvimento. Denunciando a morte, a fome, o empobrecimento das populações e a redução de seus territórios, essas comunidades buscaram traçar estratégias e alternativas para enfrentar o atual cenário, que segundo elas, é de criminalização, perda de direitos e violações de seus territórios. 

O evento foi organizado pela Terra de Direitos, Federação de órgãos de Assistência Social e Educacional (FASE),  Sindicato dos Trabalhadores Rurais, Agricultores e Agricultoras Familiares de Santarém (STTR), Comissão Pastoral da Terra (CPT) da prelazia de Itaituba, Pastorais Sociais da Arquidiocese de Santarém, Associação de Mulheres Trabalhadoras Rurais de Belterra (AMABELA), Conselho Indígena Tapajós Arapiuns(CITA) e pela Federação das Organizações Quilombolas de Santarém (FOQS).

Advogado popular da Terra de Direitos, Pedro Martins destaca como a reunião de diferentes sujeitos e sujeitas da Amazônia é estratégico em um contexto de intensos desafios. “O ano de 2019 é um ano importante para a Amazônia também fortalecer seus processos de resistência em todos os seus  territórios no campo e na cidade. Aqui contamos com a participação de lideranças de diversos movimentos sociais da região.Não só do Pará, mas do Amazonas, Rondônia, Acre e Maranhão. Esse espaço representa que são esses diferentes movimentos que podem formular e contribuir na qualificação dessa análise do cenário e nas proposições”, aponta.

Desafios para Amazônia

A atual política do governo de redução orçamentária para órgãos de fiscalização ambiental, aliada a um discurso de exploração da Amazônia, já impacta a vida dos povos da região. Dados do Sistema de Alerta de Desmatamento (SAD), divulgados pelo Instituto do Homem e Meio Ambiente da Amazônia (Imazon), apontam que, somente em setembro deste ano, a Amazônia perdeu mais de 800 km² de floresta em decorrência do desmatamento. O estado do Pará, segundo os dados do SAD, concentrou mais de 50% dessa área desmatada.  O desaparecimento da floresta traz inúmeros prejuízos às comunidades como a perda da biodiversidade e até mesmo a redução das chuvas.  

“Parece que o governo não enxerga que há pessoas e vida nessa parte das terras - não só vida dos seres humanos, mas também das árvores e animais”, aponta a indígena Clarice Tucano, da Terra Indígena Alto Rio Negro, no estado do Amazonas. O aumento do desmatamento e queimadas, no entanto, não é um fato isolado - faz, na verdade, parte de um mesmo projeto ligado ao interesse do agronegócio e de grandes corporações. 

As comunidades de Santarém já sentem os resultados desse modelo. Para atender as demandas do agronegócio para escoamento de  soja para outros estados, a construção de portos na região do lago do Maicá preocupa cada vez mais comunidades indígenas, quilombolas e ribeirinhas que dependem dessas águas para a sua sobrevivência e que serão atingidas com a realização desses megaprojetos 

A Empresa Brasileira de Portos de Santarém (Embraps) já produziu um relatório de impacto ambiental para a construção de um terminal portuário no lago. No início de agosto, uma decisão da Justiça Federal de Santarém determinou que a autorização para o licenciamento ambiental da obra só será emitida mediante a consulta prévia dos quilombolas afetados por esses megaprojetos. A consulta prévia livre e informada aos povos e comunidades tradicionais, é um instrumento previsto na Convenção 169 da Organização Internacional do Trabalho (OIT) ratificada pelo Brasil em 2002. Com base nessa convenção, as doze comunidades quilombolas de Santarém que serão diretamente afetadas pelo porto construíram em 2017 um protocolo de consulta.  A pesca, a agricultura familiar, grande pilar do sustento das famílias que residem na área, não serão mais possíveis se essa proposta for concretizada.  

A não titulação de territórios quilombolas e a não demarcação de terras indígenas aprofunda ainda mais esse cenário de violações e inseguranças na região. Indígena Munduruku da Aldeia Praia do Índio, em Itaituba, Alessandra Korap avalia que os ataques aos direitos indígenas e quilombolas e de outras comunidades tradicionais é uma parte da estratégia de instalação de empreendimentos na região. “Eles querem enfraquecer nossas comunidades. Por isso também não demarcam nossas comunidades. Sem resistência vamos perder o Rio e acabar expulsos como aconteceu em Belo Monte”, diz.

Educadora da FASE, Sara Pereira também destaca que todas essas violações estão relacionados a um projeto mais amplo para o país. “Não só a Amazônia, mas o Brasil como um todo vive uma conjuntura de retrocessos de direitos de desmonte da legislação ambiental e de ataque aos povos, ao território dos povos indígenas e tradicionais. Nós não podemos ficar inertes. Mais do que nunca é preciso que os movimentos sociais, as ONGS, os coletivos de um modo geral se organizem e se mobilizem para esse enfrentamento, que embora o inimigo seja grande, a nossa força da articulação e da união é muito maior”.

Adoecimento e morte 

Quando falamos sobre “território”, não estamos apenas falando sobre uma extensão de terra, falamos sobre questões materiais e imateriais, relações de poder, controle dos espaços, além do espaço geográfico, que está ameaçado por grandes empresas que colocam em risco a forma de vida das pessoas que nascem, crescem, e têm ali, na floresta, acesso ao seu modo de vida, e a suas histórias e ancestralidade.

Integrante da Amabela, Veralicia Pereira conta que percebe que no município de Belterra há o registro de câncer em ao menos uma pessoa de cada família, além dos caso de má formação fetal, lesões cerebrais e hepáticas, tumores, alterações comportamentais, entre outros.Segundo ela, esse índice assustador se dá, principalmente, pelo crescimento exponencial do uso de agrotóxicos na região. Até outubro de 2019 já são mais de 380 tipos de agrotóxicos liberados pelo governo brasileiro, que ignoram os dados alarmantes - desse total, três novos tipos agrotóxicos já são proibidos em outras regiões do mundo, por serem considerados nocivos à saúde humana. 

“O alimento que chega na nossa mesa, está envenenado. Nós que moramos nessa região, estamos sendo envenenados”, diz a integrante da Amabela, organização que trabalha com a expansão da agricultura familiar na região, também organizadora do Seminário. 

Além do agrotóxico, a contaminação em razão de outras atividades de exploração da Amazônia tem afetado as famílias da região. De acordo com estudo realizado em 2016 na Universidade Federal do Oeste do Pará (Ufopa), Santarém é  um dos municípios do Pará que se enquadram no primeiro nível de casos de intoxicação por mercúrio, substância usada na mineração para extração de ouro na região. O estudo aponta que enquanto nove casos de intoxicação foram registrados em 2007, em 2014 esse dado saltou para 393 casos mapeados. Segundo a pesquisa, os casos de intoxicação afetam principalmente mulheres grávidas e seus bebês, ocasionando tremores, insônia, perda de memória, alterações neuromusculares, dores de cabeça, e déficits de desempenho em testes de função cognitiva. 

Integrante do Setor de Direitos Humanos do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra, Ayala Ferreira reflete que essas diversas violações e  impactos são resultados de uma lógica “saqueadora” dos grupos econômicos, e que a Amazônia está no centro dos interesses do capital. “Esse modelo pensado de fora pra dentro de exploração e de morte da natureza e das pessoas não serve pra gente”,  reforça, e aponta caminhos possíveis para superar um modelo exploratório. “Pensar a integração e a interação dessas diferentes dimensões que compõe a região Amazônica é o nosso projeto alternativo”,

Ao final do encontro, as diversas organizações presentes elaboraram uma carta dos povos da Amazônia onde denunciam as violações que esses povos vêm sofrendo e as reivindicações para atender suas demandas.



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