Notícias / Notícias



Quilombolas de Santarém apresentam pedido para ingressar em ação contra porto de combustíveis no Lago Maicá


Ação movida pelo Ministério Público já resultou em decisão liminar para paralisação das obras; empresa agora tenta acordo e assedia comunidades

Sem consulta prévia e com licenciamento fraudulento, obras do porto da empresa Atem's estão 97% concluídas./ Foto: Atem's Distribuidora de Petróleo

A continuidade do debate sobre a retomada das obras do porto empresa Atem’s Distribuidora de Petróleo no bairro Área Verde levou a Federação das Organizações Quilombolas de Santarém (FOQS) a enviar à Justiça Federal, nesta quinta-feira (17), o pedido para ingressar como assistente litisconsorcial na ação civil pública movida pelos Ministérios Públicos Federal e Estadual contra a empresa e contra o Estado do Pará. A qualidade de assistente permitirá que as comunidades defendam o próprio direito.

A ação movida em fevereiro deste ano pelo MPF e MP-PA denuncia irregularidades na obra de um porto de combustível da Atem’s, como a falta de consulta livre, prévia e informada às populações tradicionais impactadas, conforme determina a Convenção 169 da Organização Internacional do Trabalho. A construção do porto – que está com 97% das obras concluídas – foi paralisada após decisão liminar da Justiça Federal, em maio. Agora, empresa busca realizar um acordo com o Ministério Público para garantir a continuidade do projeto.

 O porto – que foi construído às margens do rio Amazonas e na entrada do Lago Maicá – deve impactar cerca de 10 mil famílias, entre quilombolas, indígenas e pescadores que tem no lago sua fonte de sobrevivência. Esse é o segundo projeto de porto localizado na boca do Maicá que foi paralisado pela falta de Consulta Prévia.  A empresa Embraps já teve a licença suspensa pela Justiça Federal por não considerar as comunidades quilombolas no estudo de impacto ambiental.

Lago Maicá é fonte de subsistência para famílias quilombolas, indígenas e pescadoras. / Foto: Carol Ferraz/Amigos da Terra BrasilPresidente da FOQS, Mario Pantoja de Sousa ressalta a importância de a Federação - que representa os 12 quilombos da cidade - contribuir também no processo jurídico que questiona as irregularidades da obra. “É um fato muito importante, que marca a preocupação da população, não só de quilombolas. Quando a gente participa da ação a gente está contribuindo com a luta quilombola e também com a luta, indígena, de pescadores, etc.”

A Atem’s também é ré em uma segunda ação movida pelo MPF e MPA-PA no fim de abril. Na nova ação, os órgãos denunciaram fraudes no licenciamento ambiental da obra: segundo os órgãos, a empresa submeteu o projeto de licenciamento para um empreendimento que não transportaria cargas perigosas, e omitiu o fato de que que o terminal portuário armazenará combustíveis e outros derivados de petróleo para abastecer embarcações. Por omitir isso, a empresa teve o processo de licenciamento ambiental facilitado, com menos exigências e mais celeridade.

Empresa tenta acordo

Após audiências realizadas com Ministério Público Federal e Estadual e com lideranças das comunidades quilombolas, indígenas e de pescadores, a Atem’s apresentou uma proposta de acordo. O documento – enviado ao Ministério Público Federal e do Pará – indicada a possibilidade de realização de Consulta Prévia e do Estudo de Componente Indígena e Quilombola, mas inclui na proposta apenas as comunidades que estão distantes em um raio de 10 km do empreendimento. A empresa alega que estabelece esse limite de acordo com o que está indicado na Portaria Interministerial nº 60/2015, do Ministério do Meio Ambiente, Justiça e Cultura, que sugere que os estudos de impacto sejam feitos em um perímetro de, no mínimo, 10 km.

Advogada popular da Terra de Direitos – organização que presta assessoria jurídica à FOQS –, Luisa Câmara Rocha destaca que essa distância é “uma presunção relativa”, e que pode ser questionada. “É possível que uma comunidade não esteja dentro desse raio mas seja atingida por esse empreendimento”, aponta.

O presidente da FOQS também questiona a proposta de consulta prévia oferecida pela Atem’s que limita as comunidades consultadas. O Protocolo de Consulta Prévia, Livre e Informada da Federação Quilombola, publicado em 2016, estabelece de que modo o processo de consulta deve ser realizado. Segundo Mário, o fato de o empreendimento estar às margens do rio Amazonas e na boca do Lago Maicá pode impactar mesmo às famílias mais distantes. “Em rio, em lago, em águas correntes, não faz sentido, não existe isso: se vazar combustível, o rio não delimitar o estrago só até 10 km”, destaca.

Leia | Protocolo de Consulta Quilombola

Ele também conta que as comunidades já sentem os impactos na pesca, que atingem mesmo os quilombos mais distantes. “[Os quilombos de] Saracura, Arapemã e Nova Vista do Ituqui já estão percebendo o êxodo de pescadores da região do Lago Maicá para lá. Isso traz um problema muito sério: gera conflitos e violência”, observa

Retomada das obras

Na proposta de acordo, a Atem’s também apresentou um plano para retomada das obras e início das atividades do porto. A realização da consulta está prevista na primeira fase, quando as obras devem ser retomadas. O modelo proposto pela empresa não agrada as comunidades. “Isso não faz sentido”, avalia Mário. “Como vou começar um empreendimento de cima pra baixo? O protocolo dos quilombolas, indígenas e pescadores estabelece que primeiro deve ser feito a consulta para depois irem construindo”.

O Quilombo Bom Jardim é uma das comunidades quilombolas na beira do Lago Maicá que podem ser afetadas pelo porto / Foto: Franciele Petry

A advogada da Terra de Direitos também pondera que a empresa faz uma inversão na lógica da avaliação dos impactos necessários para a retomada das obras: a obtenção das licenças prévias e certificações estão previstas apenas na fase de início das atividades.

“Você inicia uma obra em um processo fraudulento e cheio de vícios formais, que desconsidera as comunidades quilombolas, indígenas e de pescadores que serão afetadas por empreendimentos, e posteriormente quando há judicialização do empreendimento, empresa oferece como proposta retomada das obras e depois o licenciamento, quando licenciamento deveria ser feito desde o início, não para finalizar”, aponta.

Assédio às comunidades

No acordo a empresa também alega que tem intuito de levar desenvolvimento à região, e dá como exemplo obras já realizadas como a construção de duas pontes de concreto, asfaltamento de estrada próxima e a doação de cestas básicas e álcool gel para comunidades do entorno da Área Verde.

As ações, no entanto, são questionadas pela FOQS. “Eles fazem isso em benefício deles”, declara o presidente da Federação. “Essas benfeitorias não têm nada a ver com a gente: se der um impacto ambiental [do Porto], quem vai ser afetado não é quem recebeu a ponte na cidade, vamos ser nós”, destaca.

No documento, a empresa também anexou três declarações de Conselhos Comunitários e Associação de Moradores da região cujos representantes se declararam favoráveis às obras.

A assessora jurídica da Terra de Direitos avalia que essa é uma forma de a empresa se justificar por não ter realizado o processo de consulta prévia aos quilombolas, indígenas e comunidades tradicionais. “Tentam suprir ausência da consulta por meio dessa documentação”, aponta. Luísa também destaca que nenhuma das associações que se declararam a favor são de grupos amparados pela Convenção 169 da OIT, e nem se fizeram presentes em outros momentos durante as audiências realizadas com o poder público. 

Mário também destaca que a entrega das cestas é uso da má-fé por parte da empresa, que se aproveita “da falta de conhecimento das pessoas” e pode causar falsas ilusões. 

Além disso, na proposta de acordo a empresa oferece a contrapartida de priorizar o oferecimento de postos de trabalho para as comunidades atingidas pela obra em um raio de 10km, desde que “observada a necessária qualificação técnica da respectiva função”.

 As comunidades sabem que, apesar da promessa, não serão beneficiados pela empresa. “Qual o quilombola qualificado? O pessoal trabalha na pesca, agricultura, extrativismo”, adverte o presidente da FOQS.  

 E reforça: “A Federação não é contra o desenvolvimento –  de jeito nenhum, pelo contrário: o desenvolvimento tem seus benefícios. Mas é importante que se entenda que por trás desse desenvolvimento na Amazônia existem milhares de pessoas e famílias, e se não fizer uma coisa bem estruturada – se só olhar o cifrão e não o bem-estar das pessoas - isso vai criar problema. Somos a favor do desenvolvimento, mas um desenvolvimento sustentável”.

 



Notícias Relacionadas




Ações: Quilombolas, Empresas e Violações dos Direitos Humanos
Casos Emblemáticos: Portos do Maicá
Eixos: Terra, território e justiça espacial