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Quilombolas podem ser despejados a qualquer momento para construção de rede de esgoto, em Barcarena (PA)


Determinação viola decisões do Supremo Tribunal Federal que suspendem despejos e a tramitação de processos judiciais de despejo de quilombos durante a pandemia. 


Mesmo em meio à pandemia de Covid-19, sete famílias quilombolas do Quilombo Sítio Conceição, em Barcarena (PA), sofrem a ameaça de um iminente despejo, a pedido da prefeitura do município. Uma decisão da 1ª Vara Federal Cível e Empresarial da Comarca de Barcarena-PA, no dia 27 de setembro, estabeleceu o prazo de 48h para a desocupação das casas onde as famílias quilombolas vivem, dentro do território quilombola.

A determinação atende um pedido da Prefeitura de Barcarena do início de setembro, que solicita a posse de parte do território quilombola para instalação da Estação de Tratamento de Esgoto Pioneiro. No pedido apresentado à Justiça Estadual, a prefeitura não menciona que a área solicitada se trata de um território quilombola, reconhecido pela Fundação Cultural Palmares desde 2016 e em processo de titulação, e tenta desmoralizar os quilombolas que vivem no território tradicional que lhes é de direito.

A decisão judicial, no entanto, descumpre ao menos duas determinações do Supremo Tribunal Federal. Em fevereiro deste ano, os ministros determinaram a suspensão da tramitação de processos que tenham risco de reintegração de posse de comunidades quilombolas. A decisão, parte da Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF) 742, considerou que um possível despejo poderia resultar no agravamento da situação dos quilombolas no enfrentamento ao coronavírus, uma vez que as famílias, ao serem despejadas, poderiam ficar aglomeradas ou desabrigadas, sem condições mínimas de higiene e isolamento. 

Em junho, o ministro Roberto Barroso também determinou, dentro da ADPF 828, a suspensão, por seis meses, de ordens ou medidas de despejo de áreas que já estavam habitadas antes de 20 de março do ano passado, quando foi aprovado o estado de calamidade pública em razão da epidemia de Covid-19.

Advogada popular da Terra de Direitos, Gabriele Gonçalves destaca que a possibilidade de despejo é uma grave ameaça aos quilombolas do Quilombo Sítio Conceição. "Apesar de todo arcabouço jurídico e da importância histórica do reconhecimento do Decreto 4887 /2003, percebemos que o que prevalece é uma luta política e não o direito positivado das comunidades quilombolas de Barcarena. O Estado ainda reproduz ações racistas, contra as comunidades quilombolas, tornando-as invisíveis, negando direitos e garantias e usurpando-as das posses das suas terras. O Estado que deveria ser garantidor de direitos é o agente que mais promove violação. É revoltante ter que se deparar com ações de despejo em comunidades quilombolas, em razão da extrema vulnerabilidade que estão inseridos diante do contexto da pandemia" 

Violação recorrente 
Essa não é a primeira vez que os direitos das famílias do Quilombo Sítio Conceição são violados pela prefeitura do município, que disputa a área com os quilombolas há mais de 40 anos. O quilombo onde vivem cerca de 200 famílias está em processo de titulação desde 2016. 

No ano passado, a prefeitura chegou a cercar cerca de 80% do território de 40 hectares para a construção do Parque Natural da cidade. O muro construído durante a pandemia não apenas cercou a porção de floresta - preservada inclusive pela presença dos quilombolas no local - mas também avançou sobre os quintais das casas. Além de perderem boa parte do território, os quilombolas não têm mais acesso por dentro do território ao Rio Murucupi, que corta a comunidade.
Para Aurélio Borges, da Coordenação das Associações das Comunidades Remanescentes de Quilombo do Pará (Malungu), a perda de partes do território com a construção do muro e agora com a instalação da Estação de Esgoto representa também o apagamento da história das comunidades quilombolas de Barcarena. “Tem essa questão que a Prefeitura entrou com o pedido para a área de preservação do bosque, onde ocupou uma área imensa da comunidade do quilombo, que é também uma área do Sítio Conceição que eles cercaram com um muro onde está a história da comunidade. Todas as questões de relíquias, de memória, da comunidade tá dentro dessa área e as comunidades estão de mãos atadas pra poder reivindicar seus direitos”, relata. 

Muro construído pela Prefeitura em parte do território quilombola. Foto: Roberto Chipp
A criação do parque foi indicada no  Decreto Municipal nº 62, de 2018, que também estabeleceu o Programa de Regularização Fundiária Urbana (Reurb) e incluiu o Quilombo Sítio Conceição dentro da política de regularização fundiária urbana da cidade.

Isso, no entanto, abriu brechas para a possibilidade de regularização individual de terrenos das famílias quilombolas, como declara a advogada popular, Gabriele Gonçalves: “Nesse decreto a Prefeitura começou a emitir títulos individuais e esses títulos não estavam nem nas comunidades quilombolas. Mais de dez títulos foram emitidos na comunidade quilombola, títulos individuais. Essa distribuição ocorreu em 2019 e é mais uma violação (de direitos humanos) porque a comunidade quilombola não pode ter títulos individuais porque o direito é coletivo”. 

O Decreto Federal 4887/2003, que regulamenta o processo de titulação, prevê a titulação coletiva dos territórios quilombolas, que deve ser feita pelo Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra). Esse decreto foi uma forma de regulamentar o artigo 68 do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias, que reconhece aos quilombolas o direito à terra.

Ao propor a titulação individual de áreas, a prefeitura abre brechas para a regularização de terrenos localizados dentro do quilombo para pessoas não quilombolas.

Além de violar o direito ao território quilombola previsto na Constituição Federal, mas medidas tomadas pela Prefeitura de Barcarena violam diretamente o direito à Consulta Prévia, Livre e Informada, previsto na Convenção 169 da Organização Internacional do Trabalho. Esse tratado internacional ratificado pelo Brasil determina que quilombolas sejam previamente consultados no caso de qualquer obra ou medida administrativa que possa impactar seus territórios ou modos de vida.

Disputa antiga
Localizado em uma região agora urbana, o Quilombo Sítio Conceição é uma área estratégica visada para especulação imobiliária. 

As disputas pela área também não são recentes. Os quilombolas já foram expropriados da terra na década de 1980, em um processo de urbanização conduzida pela extinta Companhia de Desenvolvimento de Barcarena (Codebar), em parceria com a Companhia de Desenvolvimento Industrial (CDI). Na época, as famílias foram coagidas a deixarem o local.

Com o conhecimento do direito ao território tradicional, as famílias voltaram ao local em 2008. Um ano depois, foram novamente despejados, mas retornaram em poucos meses, após acordo judicial. 
 



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Ações: Quilombolas, Conflitos Fundiários

Eixos: Terra, território e justiça espacial