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Sociedade civil aponta riscos de alteração na Lei de Antiterrorismo


Em nota pública, entidades elencam inconsistências do Projeto de Lei 3283/2021

Foto: Marcelo Camargo (Agência Brasil)

Organizações da sociedade civil e movimentos sociais expressaram em nota preocupação com a possibilidade de aprovação do Projeto de Lei 3283/2021, de autoria do senador Styvenson Valentim (PODEMOS/RN), na Comissão de Constituição e Justiça do Senado. A proposta pretende alterar a Lei 13.260 de 2016 - conhecida como Lei Antiterrorismo -, sendo está a principal legislação nacional sobre o tema.  

Segundo a nota conjunta, assinada pela Terra de Direitos, a proposta - assim como outras já apresentadas - traz conceitos extremamente amplos para práticas terroristas, com riscos de má aplicação da lei.  

Confira a nota na íntegra: 

Nota pública sobre os riscos da aprovação do Projeto de Lei 3283/2021 

Por meio desta nota pública, as organizações da sociedade civil e movimentos sociais subscreventes manifestam preocupação com a votação do Projeto de Lei 3283/2021 que, entre outras propostas, pretende alterar a Lei 13.260 de 2016 - conhecida como Lei Antiterrorismo. Em tramitação no Senado Federal, essa proposição foi recentemente aprovada na Comissão de Segurança Pública e, nesta semana, tem previsão de seguir para apreciação e votação na Comissão de Constituição e Justiça. 

As entidades signatárias desta nota acompanham o debate sobre o tema no Congresso Nacional desde as primeiras articulações que culminaram na aprovação e sanção da Lei Antiterrorismo, em 2016. O texto aprovado, apesar das reivindicações de organizações da sociedade civil e movimentos sociais, que exigiam o seu veto, e da tramitação acelerada e sem o adequado debate público, é a principal legislação sobre o assunto no Brasil. 

A versão inicial da Lei Antiterrorismo trazia previsões problemáticas ao considerar motivações “político ideológicas” como passíveis de caracterização de uma ação terrorista. De alto potencial criminalizador, o texto foi criticado pela Organização dos Estados Americanos (OEA) e Organização das Nações Unidas (ONU), que consideraram que a sua abrangente definição poderia causar restrição a liberdades fundamentais. Uma das principais vitórias da sociedade civil, após intensa pressão, foi a derrubada deste item. Essa garantia, porém, tem sido atacada desde então em diferentes projetos legislativos. 

O Brasil enfrenta uma redução do espaço democrático, no qual o Poder Legislativo tem utilizado os mecanismos de que dispõe para alimentar animosidades e promover ataques contra movimentos sociais, organizações de defesa dos direitos humanos e populações específicas. 

Ao analisarmos o PL 3283/2021, verificamos que várias de suas proposições recaem em problemas já apontados em outras propostas em tramitação no Congresso Nacional sobre o tema do terrorismo e que são, frequentemente, alvos de críticas, inclusive da comunidade internacional, ou itens já vetados no processo de debate e aprovação da Lei em 2016. 

Dentre esses problemas, destacamos:  

  • Distúrbios civis como tipo equiparado de terrorismo

A inclusão e equiparação de “distúrbios civis” a atos terroristas no § 3º do texto do PL 3283/2021, é feita de forma genérica, ampla e imprecisa, recaindo no perigo de seu uso indevido e má aplicação. Este tipo de previsão normativa, conforme foi defendido pela sociedade civil durante a tramitação da Lei 13.260/2016, viola o princípio da taxatividade no direito penal, segundo o qual a norma incriminadora deve ser elaborada de forma clara e precisa a fim de evitar interpretações extensivas. A excessiva abrangência da expressão “distúrbios civis”, contraria os padrões internacionais de direitos humanos e implica, necessariamente, na flexibilização de direitos e garantias constitucionais.

Além disso, o conceito de “distúrbio civil”, longe de pertencer à gramática jurídica, se integra à linguagem policial das “tropas de choque”, criadas para a contenção de “movimentos sociais, organizações políticas ou grandes aglomerações violentas”[1]. Assim, a definição do tipo contida no § 3º, ao afirmar que “equiparam-se a atos terroristas as condutas praticadas, por qualquer razão com a finalidade de provocar distúrbios civis, em nome ou em favor de organização terrorista ou grupo criminoso organizado que [...]” remete ao agir ordinário de movimentos sociais, a despeito dos seus propósitos legítimos.

A ação nuclear prevista no inciso I do § 3º criminaliza a atuação dos movimentos sociais reivindicatórios, posto que recai sobre a conduta de obstaculizar ou limitar a livre circulação de pessoas, bens e serviços. A ressalva do § 2º da Lei Antiterrorismo parece insuficiente para garantir a excludente da tipicidade ao transferir às polícias e ao judiciário a definição da legitimidade das reivindicações populares. 

Portanto, a proposta contida no § 3º, ao dispensar os elementos típicos do caput do art. 1º da Lei Antiterrorismo, e definir como tipo equiparado de terrorismo condutas praticadas por qualquer razão – e, assim, demasiadamente abrangente a motivação, tal qual a “político-idelógica” – e com a finalidade de provocar “distúrbios civis” – remetendo a atuação das tropas de choque –, ferem de morte as liberdades fundamentais contidas no art. 5º da Constituição e deve ser rejeitada por esta Casa.

  • Recomendações Internacionais sobre Restrições ao espaço cívico por políticas de contraterrorismo

Na 52ª Sessão do Conselho de Direitos Humanos da Organização das Nações Unidas (ONU), realizada em Genebra entre os dias 27 de março e 04 de abril de 2023, foi concluído o processo de Revisão Periódica Universal do Brasil. Concluindo o 3o. ciclo (2017-2022) e iniciando o 4o. (2023-2027), o Brasil acolheu 304 recomendações feitas por países que integram o Conselho para a garantia e promoção dos direitos humanos no próximo ciclo. Duas delas enfatizam a importância da escuta da sociedade civil em debates legislativos sobre o tema do terrorismo, alertando para a importância do respeito aos acordos internacionais de direitos humanos dos quais o Brasil é signatário, e citam projetos que vão na mesma direção das alterações propostas no PL 3283/2021. Abaixo o teor das duas recomendações aprovadas: 

149.38 Reconstruir o sistema de participação das organizações da sociedade civil nos conselhos de políticas públicas, e opor-se a propostas legislativas, como os projetos de Lei 1595/2019, 732/2022 e 272/2016, que pretendem ampliar a legislação antiterrorismo, no contexto dos movimentos sociais e organizações da sociedade civil (Paises Baixos).

149.42 Garantir que a legislação referente à luta contra o terrorismo cumpra com as obrigações internacionais em matéria de direitos humanos e não restrinja liberdades fundamentais. (Mexico). 

Em 2022, o Relator Especial sobre Direito à Liberdade de Reunião e Associação Pacífica da ONU, Clément Voule, manifestou igual preocupação com projetos que, com base em definições amplas de terrorismo, podem dar origem a legislação que permita a criminalização do ativismo e de movimentos sociais, restringindo liberdades fundamentais e confirmando uma tendência de restrição do espaço cívico [2].

Um ano antes, sete Relatores da organização (sobre Direitos Humanos e Liberdades Fundamentais no Combate ao Terrorismo; Obrigações de Direitos Humanos para Desenvolvimento Sustentável; Promoção de Direitos de Opinião e Expressão; Direito à Liberdade de Reunião e Associação Pacífica; Situação de Defensores de Direitos Humanos; Detenção Arbitrária e Direito à Privacidade) publicaram nota técnica manifestando “profundas preocupações” com os projetos de reforma da legislação sobre o tema no Brasil. Textos que buscam expandir a definição de terrorismo, ampliando a lista de atos considerados terroristas, e que sugerem o aumento da pena a partir de termos mal definidos, foram considerados um perigo pelo seu prejuízo aos princípios da legalidade e segurança jurídica, colidindo com compromissos de proteção dos direitos humanos. Além disso, foi igualmente destacado que processos legislativos como esse devem envolver a ampla participação da população e não devem tramitar em caráter de urgência [3].

Também em 2021, o Representante Regional para América do Sul do Alto Comissariado das Nações Unidas para Direitos Humanos, Jan Jarab, enviou um comunicado ao, à época, presidente da Comissão de Direitos Humanos da Câmara dos Deputados, manifestando preocupação com propostas de ampliação de definição de terrorismo e reforçando que a legislação não deve restringir ou desencorajar o exercício do direito de reunião pacífica [4]. Em sua Resolução n° 7/36, o Conselho de Direitos Humanos da ONU firmou a necessidade de garantir que a invocação da segurança nacional, incluindo quando utilizada para conter o terrorismo, não seja usada injustificadamente ou arbitrariamente, restringindo o direito à liberdade de opinião e expressão.

  • Aumento da pena de multa cominada ao delito de associação para o tráfico

Cumpre chamar atenção ainda para o aumento da pena de multa cominada ao delito de associação para o tráfico, inserida por meio de emenda na Comissão de Segurança Pública. As penas de multa, hoje, em que pese objetivarem a instituição de sanção patrimonial para delitos que repercutem no campo patrimonial e, portanto, têm como motivação o aumento do patrimônio do agente, consistem em graves “sentenças de exclusão”. Enquanto não quitadas as multas, a execução da pena permanece em aberto e os efeitos extrapenais da condenação continuam em operação. O inadimplemento da pena de multa, assim, acarreta a suspensão dos direitos políticos (art. 15, III, da Constituição), que culmina em efeitos em cascata na vida do cidadão impossibilitado de fazer qualquer coisa que demande regularidade eleitoral, como o CPF regular, emissão de carteira de trabalho, tornar-se titular de conta bancária ou até mesmo contratar serviços de luz em seu próprio nome. São os efeitos colaterais da condenação criminal.

Não é desconhecido que a população carcerária é majoritariamente composta de homens jovens, negros, de baixa escolaridade e com poucas oportunidades na vida antes ou depois do cárcere. O aumento das penas de multa agrava os efeitos sociais perversos da condenação criminal, impedindo a reintegração social das pessoas egressas do sistema prisional, que já cumpriram as penas privativas de liberdade que lhes foram impostas.

Veja-se dados de São Paulo, obtidos por Gabriel Brollo Fortes via Lei de Acesso à Informação: para um crime de tráfico de drogas cometido em 2021, a pena de multa variou entre o mínimo de R$18.300,00 e o máximo de R$8.250.000,00. Em média, a pena de multa fixada por tráfico foi de R$38.300,00. Por sua vez, apenas 0,03% das multas estipuladas por tráfico foram quitadas no mesmo período. Isso significa que para a grande maioria das pessoas condenadas, os efeitos da pena não só se prolongam, como são insanáveis, pois torna-se inviável seu adimplemento. 

O delito de associação para o tráfico, frequentemente aplicado quando o flagrante se dá contra duas pessoas, independentemente da presença de elementos que indiquem a associação a alguma organização criminosa, assim, tem o efeito perverso de elevar as penas corporais. Portanto, o absurdo aumento de pena contido na proposta somente agrava este cenário, razão pela qual pedem as organizações que seja rejeitado pelos Senadores.  

  • Conclusões e pedido

Diante do exposto, as entidades signatárias compreendem pela inconstitucionalidade do PL 3283/2021, visto não cumprir os requisitos impostos pela Constituição no que se refere ao princípio da taxatividade; maculando, por conseguinte, o princípio da legalidade, fundamento último do sistema jurídico penal. Assim, requerem que a sociedade civil seja ouvida nesse debate e que a proposta seja rejeitada na Comissão de Constituição e Justiça do Senado Federal. 

Assinam essa nota:

Terra de Direitos 
Conectas Direitos Humanos
Artigo 19
Instituto Brasileiro de Ciências Criminais - IBCCRIM 
Rede Justiça Criminal
Justiça Global
Instituto de Defesa do Direito de Defesa - IDDD
Instituto Sou da Paz
Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra - MST 
Núcleo de Assessoria Jurídica Universitária Popular (NAJUP) Luisa Mahin/UFRJ

Notas de Rodapé

1-  NETTO, Fernando Antunes. CAPACITAÇÃO EM OPERAÇÕES DE CONTROLE DE DISTÚRBIOS: restauração da ordem e garantia da paz. In. O Alferes, Belo Horizonte, 70 (27): 51-78, jan./jun. 2017.

2 -  Disponível em: <https://www.conectas.org/wp-content/uploads/2022/04/2022-04-08-Preliminary-observations-Sr-FoAA-Brazil_portuguese-1.pdf>.

3 -  Disponível em: <https://spcommreports.ohchr.org/TMResultsBase/DownLoadPublicCommunicationFile?gId=26450>.

4 -  Disponível em: <https://www2.camara.leg.br/atividade-legislativa/comissoes/comissoes-permanentes/cdhm/noticias/onu-demonstra-preocupacao-com-projeto-de-lei-sobre-terrorismo>.



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Eixos: Política e cultura dos direitos humanos