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Em atendimento à garantias constitucionais, Quilombo Paiol de Telha (PR) obtém vitórias no TRF4


Decisões pelo Tribunal Regional Federal abrem importantes precedentes na luta urbana e rural na luta pelo direito ao território.

Integrantes da Comunidade Paiol de Telha, quilombolas do RS e organizações urbanas comemoram o resultado do julgamento. Foto: Lizely Borges

 

O Tribunal Regional Federal da 4ª Região (TRF4) julgou, nesta terça-feira (17), em Porto Alegre (RS), favoravelmente à Comunidade Invernada Paiol de Telha. Na pauta constavam dois recursos sobre os direitos territoriais da comunidade quilombola localizada em Reserva do Iguaçu (PR).  O primeiro recurso dizia respeito à um pedido de reintegração de posse pela Cooperativa Agrária Agroindustrial. Caso acolhido pelo colegiado, o recurso resultaria no despejo de 70 famílias da área ocupada em 2017.

O segundo recurso, de autoria da Advocacia Geral da União (AGU), recorria da decisão, em caráter liminar, da 11ª Vara Federal de Curitiba, de março deste ano, que obriga o Estado brasileiro a destinar recursos ao Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra) para a titulação da integralidade do território. Ambos recursos foram rejeitados, por um placar apertado: 2 votos de não acolhimento aos recursos contra um voto favorável.

“Essa vitória foi imensa pra nós, diziam que ia tirar nós de lá, tirar o que é nosso. Estamos voltando [para Curitiba] com tudo direito o que é nosso. Vamos tomar conta da nossa área, vamos continuar nessa briga. Pra plantar, ter mais vaca de leite, pra dar leite pra comunidade, pra dar serviço. Já temos um trator e plantadeira, e quero, se Deus quiser, ano que vem quero comprar um ônibus para a comunidade. Não temos nada a perder, temos mais a nos fortalecer", comemorava o presidente da Associação da Comunidade, João Trindade, com sorriso largo no rosto.

Durante toda a tarde integrantes da comunidade que se deslocaram para a capital gaúcha aguardavam boas notícias nas escadarias do TRF4. Impedidos de acessar a sala de julgamento, o grupo multigeracional (de senhor de 85 anos a criança de 5 anos) recebia as notícias sobre o futuro da Comunidade por redes sociais e informes da assessoria jurídica da Terra de Direitos.

"“Essa vitória foi imensa pra nós, diziam que ia tirar nós de lá, tirar o que é nosso. Estamos voltando [para Curitiba] com tudo direito o que é nosso", comemora Joao Trindade. Foto: Lizely Borges

Responsabilidade do Estado brasileiro
Acolhido pela desembargadora Marga Barth Tessler, o argumento de paralisação do processo de titulação como resultado do contingenciamento dos recursos públicos - base de sustentação do recurso impetrado pelo Incra - encontrou forte oposição nas manifestações do desembargador Rogério Fravreto e do procurador regional da República, Paulo Gilberto Leivas.

“A restrição orçamentária é realidade há muito tempo em territórios nacional atingido as diferentes esferas, contudo tal fundamento é usado como escusas para implementação de políticas públicas. Porém, ao discursos de restrição orçamentária não são poucas as notícias de destinação de verbas para implementação de projetos envolvendo vultuosos quantias beneficiando outras setores da sociedade”, destaca o desembargador durante manifestação do seu voto.

O reconhecimento ao território tradicional pelas comunidades quilombolas está assegurado no artigo 68 do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias. No entanto, o Estado brasileiro – passadas mais de três décadas da incorporação do direito ao texto constitucional – ainda tarda a efetivar o direito de propriedade definitiva dos quilombolas sobre seus territórios.

“Sendo direito fundamental tem aplicabilidade imediata, ele tem que ser cumprido independente da sua regulamentação, não pode ficar à mercê a disponibilidade orçamentária ou decisão política por parte do administrador público”, destaca o procurador.

A afirmação do procurador dialoga com a escolha política do Executivo em privilegiar a destinação de recursos públicos para outras áreas, como o agronegócio. Histórico opositor à titulação de comunidades quilombolas, o Estado brasileiro reservou R$ 225,59 bilhões ao Plano Safra 2019/2020. O montante possui forte assimetria ao orçamento disponibilizado para o presente ano para titulação dos territórios quilombolas no país: apenas R$ 423.082 mil para a indenização de áreas. Neste ritmo, serão necessários mil anos para titular as comunidades com processos abertos no Incra.

O contexto possui agravante na medida em que o Estado brasileiro não apresentou, até o momento, nenhum planejamento para titular a totalidade das comunidades quilombolas.  Mesmo com a recomendação em 2018 pela Comissão Interamericana de Direitos Humanos (CIDH) de que o fizesse, o país mantem paralisada a política destinada a esta população.

“A positivação constitucional do direito obriga o Estado adotar algum planejamento que, por obvio, preveja orçamento que faça frente à demanda. Caso houvesse planejamento orçamentário seria aceitável que, sob determinadas circunstâncias, houvesse períodos de diminuição de recursos em função do quadro fiscal. Contudo, a disponibilização de apenas R$ 423.082,00 em 2019 para todo o país, somando à ausência completa de planejamento, configura violação passível de correção judicial”, argumentou o assessor jurídico da Terra de Direitos, Fernando Prioste, durante o julgamento.

Impedida de entrar na sala do julgamento, a comunidade aguardava o resultado nas escadarias do TRF4. os Foto: Lizely Borges

Abertura de precedentes
Diante de um cenário desfavorável à efetivação do direito ao território pelos povos tradicionais, o não acolhimento pelo Tribunal ao recurso da União – de desobrigar o Estado brasileiro a destinar recursos ao Incra – pode abrir precedentes em futuras medidas judiciais pelas comunidades de exigência de cumprimento do papel do Estado. Ainda que seja visto com reservas, a judicialização é um caminho diante de um Executivo e legislativo refratários aos compromissos constitucionais quilombolas.

No último período Executivo e Legislativo Federal acumula fortes comprovações de paralisa da política quilombola. No período eleitoral o então candidato à Presidência, Jair Bolsonaro (sem partido), declarou que em sua gestão não mediria esforços para avanço de nenhum passo na titulação das áreas. Já nos primeiros dias sob nova gestão, pela Medida Provisória n° 870/2019 o Incra foi realocado da Casa Civil da Presidência da República para o Ministério da Agricultura. Tanto o mais alto cargo da pasta quanto a secretaria responsável pela titulação estão sob comandos de expoentes vinculados ao agronegócio e opositores à política de titulação quilombola: a ministra de Tereza Cristina (PSL) e o ex-presidente da União Democrática Ruralista (UDR) Nabhan Garcia, respectivamente. A reconfiguração administrativa dos ministérios, com a pastas de responsabilidade da titulação sob comando de opositores à política quilombola, a ausência de orçamento e planejamento de titulação e as declarações de Bolsonaro são objetos de denúncia internacional realizada pelo movimento quilombola e por organizações de direitos humanos.

“Esta decisão [do TRF4] nos surpreende favoravelmente porque vai na contramão do entendimento nefasto que está se criando em alguns campos do jucidiacrio. É um precedente importante. Agora as comunidades quilombolas devem aproveitarem esse tempo para fortalecer a organização e dar essa batalha por narrativas no judiciário”, destaca o advogado e integrante da Frente Quilombola do Rio Grande do Sul, Onir de Araújo.

Com isso, espera-se que processos como o da Comunidade São Miguel dos Carvalho, localizado no município de Restinga, região central do Rio Grande do Sul, possa avançar. Mesmo com o decreto de desapropriação publicado em 2009 as cerca de 200 famílias aguardam, há mais de uma década, pelo título coletivo permanente da área a que tem direito. Solidários à luta da Comunidade Paiol de Telha, quilombolas de São Miguel reafirmavam, nas escadarias do Tribunal, a importância da manutenção do vínculo com o território tradicional. “O título [do território tradicional] é a terra e a terra é sagrada para sobreviver. Sem terra não há planeta, reprodução, sentimento, e o que pra todas as outras concepções não são consideradas para nós tem um valor indispensável”, destaca, em conexão com as várias dimensões que a permanência no território evoca.

"Agora as comunidades quilombolas devem aproveitarem esse tempo para fortalecer a organização e dar essa batalha por narrativas no judiciário", destaca Onir. Foto: Lizely Borges

Estado de vigilância
Parcialmente titulada em maio deste ano, os dois recursos evidenciam que, embora o Estado brasileiro tenha reconhecido o direito à titulação da totalidade do território em 2014, após décadas de luta das famílias, e o decreto de desapropriação da área, em benefício da Comunidade, date de 2015, a comunidade ainda sofre de toda ordem de ameaças e violações, como pedido de despejo das famílias a paralisação do andamento da titulação da área.

Esta vulnerabilidade posiciona a Comunidade num estado permanente de vigilância, como aponta a integrante da Comunidade e também da Coordenação Nacional de Articulação das Comunidades Negras Rurais Quilombolas (Conaq), Ana Maria da Cruz. “A Comunidade tem que estar sempre vigilante, todos os dias, com os pés no chão e apreensiva com o que vai acontecer amanhã. Hoje é um dia, amanhã é outro e a gente permanece unido porque é através da união que faz com que a gente tenha força para lutar. Tudo o que vir nós vamos enfrentar. Saímos do Tribunal com uma vitória provisória, mas já preparado para correr atrás de novas batalhas”,  destaca Ana.

Uma nova batalha que já se anuncia é a construção das Pequenas Centrais Hidrelétricas (PCHs) Foz do Capão Grande e Pituquinhas na região centro-sul do Paraná, com impactos sobre o território tradicional. Já com irregularidades nos processos de consulta pública e prévia à população – etapa inicial e obrigatória no desenvolvimento de obras -  as hidrelétricas são rejeitadas pela Comunidade.

 

 



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Ações: Quilombolas
Casos Emblemáticos: Comunidade quilombola Paiol de Telha
Eixos: Terra, território e justiça espacial